segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O repertório coral

Todo ensaio coral, para ser eficiente e produtivo, precisa ser planejado e organizado. O planejamento do ensaio começa sempre com a escolha do repertório a ser interpretado, uma tarefa complexa porque as obras selecionadas devem estar em consonância com o nível técnico, musical e vocal do grupo, assim como o perfil econômico, social e cultural dos participantes e da instituição a qual o coro está vinculado. As obras que constituirão o repertório semestral ou anual do conjunto precisam ser definidas antes do início da temporada de ensaios. Elas devem ser acessíveis e, ao mesmo tempo, desafiadoras. Após selecionar o repertório, o regente elaborará o cronograma dos ensaios, o calendário das apresentações, assim como os recursos financeiros, materiais e humanos necessários à consecução dos projetos e metas estabelecidos.

No Brasil, a edição e publicação de obras originais para coro ainda é incipiente, fato que poderá dificultar as possibilidades de escolha do repertório. Esta realidade tem levado muitos profissionais a optarem por um repertório de qualidade duvidosa, relegando, para o segundo plano, a vasta literatura originalmente escrita para coro. Defendo que os regentes selecionem os repertórios dos seus grupos pensando sempre numa perspectiva artística e educacional, que promova o crescimento técnico e expressivo dos cantores.

É possível encontrar gratuitamente na Internet obras de diferentes períodos, autores e estilos. Entretanto, muitas partituras apresentam problemas, merecendo um olhar mais atento do regente, uma vez que podem ter sofrido grandes alterações editoriais. Recomendo uma visita ao sítio da Choral Domain Public Library (http://www.cpdl.org/), que tem um acervo organizado e variado. Outra possibilidade são os pacotes promocionais que as editoras norte-americanas e européias oferecem aos seus clientes. O interessado precisa cadastrar-se e pagar taxas específicas para receber, pelo período de doze meses, uma cópia de cada uma das obras publicadas pela editora selecionada. Dentre as mais conhecidas, destacam-se a Oxford (http://www.oxfordmusiconline.com/), a Santa Barbara Music Publishing (http://www.sbmp.com/), a Alliance Music (http://www.alliancemusic.com/), a Hinshaw Music (http://www.hinshawmusic.com/), a EarthSongs (http://www.earthsongschoralmusic.com/), a Boosey & Hawkes (http://www.boosey.com/) e a Cantus Quercus (http://www.cantusquercus.com/), esta última especializada em música coral brasileira. Por aqui, algumas instituições têm se dedicado à publicação do repertório coral, dentre as quais a Editora da Universidade de São Paulo (http://www.edusp.com.br/) e o Museu da Música de Mariana (http://www.mmmariana.com.br/). Uma boa sugestão para ampliar o conhecimento do repertório é ouvir a rádio online da American Choral Directors Association (http://www.acda.org/), que apresenta obras corais diversificadas.

A prática coral é um espaço privilegiado para a educação musical, e o foco do regente deve ser dirigido para a sistematização pedagógica desta atividade. Por isso, é preciso selecionar o repertório criteriosamente e em função da sua importância no processo de aquisição e compreensão da linguagem musical.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Música e carnaval

Carnaval é sinônimo de liberdade e alegria. É a festa do deboche e do sarcasmo na qual os brincantes, através da arte, questionam e desmistificam o discurso da autoridade e do poder, abordando a vida cotidiana com muito humor, ironia e irreverência.

Na Itália seiscentista, a expressão canti carnascialeschi designava as canções polifônicas cantadas no carnaval Florentino por intérpretes mascarados, que, segundo o Dicionário Harvard de Música, andavam a pé ou fantasiados em carros decorados. Os textos das composições, na sua grande maioria anônimos, celebravam as artes e o comércio da região, assim como tratavam de temas alegóricos e moralistas. Os poemas eram estróficos, apresentando geralmente versos octossílabos. Como as composições eram interpretadas em espaços abertos, nas ruas e praças, e a compreensão do texto era condição essencial para a instauração do riso, os compositores recorriam às formas homofônicas e silábicas, daí a predileção pela frottola, a canzona a ballo, a villanella e a mascherata.

As canções obscenas e com duplo sentido também integravam o repertório carnavalesco renascentista como sugere o título Canti della malmaritata, delle donne giovani e di mariti vecchi, delle vedove, dei giudei battezzati (Canções das esposas infelizes, das esposas jovens casadas com homens velhos, das viúvas, dos judeus batizados) e os versos de Canti di lanzi tamburini, cuja tradução apresentamos a seguir: “Lanzi percussionistas nós somos, / vindos da Alemanha / para tocar bombo e flautas / onde há guerra e bons vinhos. / Nós temos flautas grossas, / longas e bem decoradas; / Belas senhoritas, nós podemos mostrá-las, / todas tocam suavemente, / e são boas na frente e atrás, / no começo e até o fim... / E se vocês também, adoráveis senhoritas, / desejam aprender como tocá-las, / nós estamos alojados na Piazza Padella, / no lado oposto aos banhos quentes, / onde, costumeiramente, / oferece-se prazer aos Florentinos”.

A temática sexual foi explorada por outros compositores italianos e franceses, dentre os quais Clément Janequin, que escreveu várias canções baseadas nos poemas satíricos e eróticos de Clément Marot, todas com forte apelo burlesco. Carnaval é ruptura e inversão, e a música há muito tempo tem sido usada para dessacralizar os discursos oficiais. Como José Luiz Fiorin observa, no livro Introdução ao pensamento de Bakhtin, o carnaval não é uma festa que se presencia, mas que se vive. Para ele, “o carnaval é constitutivamente dialógico, pois mostra duas vidas separadas temporalmente: uma é a oficial, monoliticamente séria e triste, submetida a uma ordem hierarquicamente rígida, penetrada de dogmatismo, temor, veneração e piedade; outra, a da praça pública, livre, repleta de riso ambivalente, de sacrilégios, de profanações, de aviltamentos, de inconveniências, de contatos familiares com tudo e com todos”.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)