segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O poder da educação e do amor

Eu o conheci há alguns anos. Ele foi meu aluno no curso de graduação em música. Suas atitudes chamavam a minha atenção. Parecia estar sempre despreparado, visto que entregava os exercícios incompletos, interrompia as aulas com perguntas inadequadas, gargalhava importunamente. Passei algum tempo para compreender que tal comportamento era conseqüência dos vários problemas que afetavam a vida daquele estudante.

Seus gestos e hábitos mudaram com a timidez das luas minguantes. O  esforço era nítido. Passou a frequentar as aulas assiduamente, trazendo livros, textos e tarefas organizadas. Convidei-o para ingressar no coro que estava dirigindo, porque sabia que a prática coral seria decisiva naquele processo de aprendizagem musical e resgate da auto-estima. Ele aceitou a proposta e integrou-se ao grupo, participando dos ensaios e apresentações frequentemente, solfejando, cantando, ampliando seu círculo de amizade, superando limites e medos, vivendo ativamente os vários encontros e momentos de integração social, cultural e afetiva. Os colegas, professores e familiares perceberam as diferenças. Certo dia fui interpelado por suas irmãs, que me contaram um pouco da vida dele e das mudanças ocorridas desde o seu ingresso no coro. Agradeceram-me, falaram em milagres, que Deus usara o meu trabalho para converter um destino, salvar uma vida. Naquele terreno movediço, tentei ser imparcial escutando um testemunho comovente, procurando entender a força da fé e os sigilos que habitam o hiato entre o céu e a terra.

No tempo certo, chegada a hora da partida, troquei o calor da Chapada pelo frio da Serra. Trouxe no peito as marcas de uma trajetória intensa, uma saudade dolente e a certeza de que, à semelhança do poeta, continuaria cuidando daqueles que cativei. Distanciei-me das minhas benquerenças temporariamente, pois o silêncio é um bálsamo para as dores incomensuráveis. Numa manhã ensolarada, abro o email e vejo uma mensagem do meu aluno. Ele fala com entusiasmo dos seus avanços, do curso de flauta doce e violino, da aprovação nas aulas de Linguagem e Estruturação Musical, da dura realidade do estágio docente nas escolas públicas, das expectativas de emprego e da experiência de cantar, numa igreja qualquer, durante a Semana Santa, o primeiro solo da vida, o salmo responsorial, naquela que simbolicamente também poderia ser considerada a celebração da sua Páscoa. Aleluias.

Há poucos dias ele me enviou o seu convite de formatura. Fiquei imaginando a feliz sensação do dever cumprido estampada no rosto dele, dos amigos e da família. Celebremos, portanto, a alegria do agora, porque a desafiadora história deste aluno – e de tantos outros – ilumina o horizonte das minhas memórias, dá sentido à minha práxis pedagógica, ratifica a função catártica da arte, a força transformadora da música, os aspectos poéticos e proféticos da missão que abracei, o poder libertador da educação e do amor.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)