Eu o conheci há alguns anos. Ele foi meu aluno no curso de graduação em música. Suas atitudes chamavam a minha atenção. Parecia estar sempre despreparado, visto que entregava os exercícios incompletos, interrompia as aulas com perguntas inadequadas, gargalhava importunamente. Passei algum tempo para compreender que tal comportamento era conseqüência dos vários problemas que afetavam a vida daquele estudante.
Seus gestos e hábitos mudaram com a timidez das luas minguantes. O esforço era nítido. Passou a frequentar as aulas assiduamente, trazendo livros,
textos e tarefas organizadas. Convidei-o para ingressar no coro que estava
dirigindo, porque sabia que a prática coral seria decisiva naquele processo de
aprendizagem musical e resgate da auto-estima. Ele aceitou a proposta e integrou-se
ao grupo, participando dos ensaios e apresentações frequentemente, solfejando,
cantando, ampliando seu círculo de amizade, superando limites e medos, vivendo
ativamente os vários encontros e momentos de integração social, cultural e
afetiva. Os colegas, professores e familiares perceberam as diferenças. Certo
dia fui interpelado por suas irmãs, que me contaram um pouco da vida dele e das
mudanças ocorridas desde o seu ingresso no coro. Agradeceram-me, falaram em
milagres, que Deus usara o meu trabalho para converter um destino, salvar uma
vida. Naquele terreno movediço, tentei ser imparcial escutando um testemunho comovente, procurando entender a força da fé e os sigilos que habitam o hiato entre o céu e a terra.
No tempo certo, chegada a hora da partida, troquei o calor da Chapada
pelo frio da Serra. Trouxe no peito as marcas de uma trajetória intensa, uma
saudade dolente e a certeza de que, à semelhança do poeta, continuaria cuidando
daqueles que cativei. Distanciei-me das minhas benquerenças temporariamente,
pois o silêncio é um bálsamo para as dores incomensuráveis. Numa manhã
ensolarada, abro o email e vejo uma mensagem do meu aluno. Ele fala com
entusiasmo dos seus avanços, do curso de flauta doce e violino, da aprovação
nas aulas de Linguagem e Estruturação Musical, da dura realidade do estágio
docente nas escolas públicas, das expectativas de emprego e da experiência de
cantar, numa igreja qualquer, durante a Semana Santa, o primeiro solo da vida,
o salmo responsorial, naquela que simbolicamente também poderia ser
considerada a celebração da sua Páscoa. Aleluias.
Há poucos dias ele me enviou o seu convite de formatura. Fiquei
imaginando a feliz sensação do dever cumprido estampada no rosto dele, dos
amigos e da família. Celebremos, portanto, a alegria do agora, porque a
desafiadora história deste aluno – e de tantos outros – ilumina o horizonte das
minhas memórias, dá sentido à minha práxis pedagógica, ratifica a função
catártica da arte, a força transformadora da música, os aspectos poéticos e
proféticos da missão que abracei, o poder libertador da educação e do amor.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)