sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Entre o ideal e o real

Viajei pelo Nordeste do Brasil, aproveitando as férias com a família. Como de costume, calculei distâncias, estimei tempo e gastos. Recorri ao GPS disponível no celular, pois com ele seria possível seguir sem correr riscos de perder a meta almejada. Parti pelo interior da Paraíba em direção ao litoral cearense, andando por estradas silenciosas, encantado com a dança das pequenas borboletas amarelo-esverdeadas que cruzavam o meu caminho. Na divisa com o Rio Grande do Norte, o celular perdeu a conexão, alterando a rota do mapa, me levando à Santa Cruz, onde, no alto do Monte Carmelo, ergueram, recentemente, uma portentosa imagem de Santa Rita de Cássia.

Estava cem quilômetros distante daquilo que seria o caminho ideal. Para retomar a direção, haveria, portanto, de rever o itinerário, redefinir as estratégias. Enquanto regressava, comecei a pensar no que ocorrera, fazendo um paralelo com a nossa atividade como regentes. Nós planejamos o ensaio coral com o intuito de solucionar problemas rítmicos, melódicos, harmônicos e vocais, favorecendo a fluência musical. No entanto, mesmo estando tecnicamente preparados, continuamos reféns dos caprichos do acaso. De vez em quando, ao longo de um concerto, somos surpreendidos com desafinações, mudanças na duração e articulação das notas, pequenos atropelos antes nunca imaginados, provocados por fatores desconhecidos e que estão além do nosso domínio. Quem, por exemplo, nunca esqueceu uma entrada/corte ou se perdeu diante da partitura e, por este motivo, viu-se obrigado a adotar, como diria o professor Angelo Dias, um gestual místico, incompreensível, impressionante? Certamente, todo mundo já passou por alguma situação similar.

Há algum tempo, durante uma apresentação, o iluminador aleatoriamente acendeu um foco de luz numa intensidade diferente daquela que havíamos estabelecido no ensaio, cegando-me temporariamente. Quando mudei a direção do olhar, tentando acompanhar a partitura, não conseguia enxergar, o que quase prejudicou a atuação do conjunto. Neste momento em que a adrenalina faz o coração bater mais rápido, o mundo congela, os segundos transcorrem como uma eternidade, o prazer transforma-se em dor. Deste modo, antes das apresentações, sempre lembro aos meus alunos que, diante do inesperado, o melhor é manter o controle, respirar, conservar-se atento.

Ali, no calor escaldante do agreste potiguar, perto da santa das causas impossíveis, entrevi o real: no palco e na vida, aquilo que é planejado, por mais elaborado e consistente que seja, cede diante do imprevisível, que, como assinalaram Toquinho e Vinicius, sem pedir licença muda a nossa vida e depois convida a rir ou chorar. Desconfiado, achei melhor desligar o celular. Segui tranquilo, ouvindo o violonista Nonato Luiz. Quando necessário, parava e, sorrindo, perguntava aos moradores dos vilarejos, que conhecem e vivem na região, qual o melhor caminho a seguir.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Folias de Reis

Eu nasci com os primeiros raios de sol do dia seis de janeiro. Meus pais residiam no bairro da Liberdade, numa casa simples, nos arredores da oficina mecânica onde meu pai trabalhava. Como toda família pobre do início da década de setenta, a minha também não estava completamente preparada para me receber. Os recursos financeiros eram escassos e minha mãe não adquiriu um enxoval completo para o meu nascimento. Assim, dormi durante algumas semanas dentro de uma pequena banheira plástica, que também era usada para os meus primeiros banhos.

Seis de janeiro, no calendário litúrgico católico, é dedicado aos Santos Reis, marcando, simbolicamente, o dia em que Jesus Cristo recebeu a visita dos três magos do oriente (Belchior, Gaspar e Baltazar). Como ocorre com a maioria das festas religiosas católicas, esta também caiu no gosto popular brasileiro. Aqui na Paraíba, por exemplo, desde o início do século XX, a cidade de Queimadas é conhecida por seus festejos. É por esta razão que Tia Luísa, com fala trôpega e olhos distantes,
ainda hoje me explica porque não acompanhou o meu nascimento, já que havia passado a noite toda naquela cidade, participando das festividades, ao lado de Dona Júlia e Antônio Grilo.

Mas Tia Lúcia nunca deixou aquele acontecimento familiar passar em branco. Desde então, todo dia seis de janeiro, quando me vê, vai logo entoando os versos do sucesso de Tim Maia, que, à época, ela ouvia animadamente na pequena vitrola vermelha portátil: “Hoje é o dia de santo reis / anda meio esquecido / mas é dia da festa de santo reis / anda meio esquisito / mas é o dia da festa de santo reis...” Esta canção fez parte da trilha sonora dos meus aniversários durante vários anos. No entanto, demorei certo tempo para entender o sentido da celebração da epifania, isto é, a revelação, a manifestação do mistério de Deus.

Desde a minha primeira Festa de Reis, já tive a oportunidade de andar por vários lugares e conhecer muita gente. Nessas andanças, o Criador sempre esteve ao meu lado, em todas as situações, revelando-se de diferentes formas, às vezes nem sempre tão claras, através das inúmeras pessoas que encontrei. Por isso, eu só tenho motivos para agradecer à minha família, esposa e filhos; aos meus mestres, alunos e colegas de trabalho; a todos os amigos, de todos os tempos e partes, de todas as cores e credos, que cruzaram o meu caminho, que ajudaram a construir aquilo que fui, sou e serei. Meu desejo é que juntos possamos continuar, por muitos anos, celebrando outras folias, apresentando e manifestando as faces misteriosa, amorosa, misericordiosa, musical e poética de Deus.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)