sábado, 25 de maio de 2019

A primeira lapingochada é minha!

Um dos maiores mananciais para a pesquisa da música de double entendre é indiscutivelmente o Renascimento. São inúmeros os exemplos desse tipo de repertório na literatura vocal do século dezesseis. O uso das onomatopeias e o emprego de refrãos compostos por sílabas neutras, dentre as quais fa-la-las e suas variantes, reforçam o perfil dúbio dos textos que muitas canções seculares evocam, ratificando aquilo que Bakhtin já preconizara, isto é, que a carnavalização é uma forma de contradiscurso, que provoca o riso e a reflexão de quem os enuncia/escuta.

Um villancico que ilustra bem esse processo é Dale si le das, moçuela de Carasa. Em todos os versos há sempre uma dúvida semântica que se estabelece pelo uso de trocadilhos: Otra mozuela, Teresica, mostrado me ha su cri[ca]... atura que llevaba bien criada (Outra jovem, Teresica, mostrou-me seu bichinho bem cuidado). A fermata sobre a sílaba cri, no substantivo criatura, seguida por breve pausa, sugere que a rima para Teresica seria crica, um dos sinônimos para a genitália feminina, na língua espanhola. Como ratifica Fiorin, a linguagem carnavalesca “é repleta de sarcasmos e insultos. No entanto, esses xingamentos e zombarias não têm caráter ofensivo, mas brincalhão.” Na renascença italiana e francesa isso ocorre frequentemente, basta analisar alguns madrigais ou as chansons de Clement Janequin.

A música popular brasileira, sobretudo aquela produzida aqui no Nordeste, explora essa temática de modo muito particular. O chamado forró de duplo sentido mantém-se vivo, intrigando-nos e ao mesmo tempo alegrando-nos com suas ironias e ambiguidades. Clemilda, Zenilton, João Gonçalves e Genival Lacerda, dentre outros, gravaram sucessos que ainda hoje nos fazem sorrir, pensar e dançar.

Zé da Onça, uma pérola de João do Vale, Abdias Filho e Adrian Caleiras, trilha do filme Rico ri à toa, dirigido pelo cineasta Roberto Farias, produção da Brasil Vita Filmes, é uma crônica de costumes que trata questões éticas e amorosas com leveza e escárnio. Nos versos da canção, uma mulher conversa com um homem, dizendo-lhe que o seu esposo está prestes a morrer. Comenta que, ao lado dele, a vida não é das melhores e que isso deverá piorar após a sua partida. Predador, como todo felino, e carregado de segundas intenções, diz-lhe que, caso fique viúva e decida contrair matrimônio mais uma vez, ela deveria dar-lhe a preferência, pois os dois dão certo e combinam “tal qual a boca de um bode.” O jogo dialógico do casal é permeado por ambivalências que são potencializadas até o final da narrativa, quando Sá Chiquinha, de forma ingênua e maliciosa, pergunta: "Se eu quiser me casar de novo, Zé, o que é que há?" E ele, quase descrente, mas eufórico, responde: "A primeira lapingochada é minha!”

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Adeus, Irmã Tarcísia.

Há muito tempo, frequento o Mosteiro Santa Clara. Essa aproximação com as Clarissas começou cedo, ao lado de Tia Lúcia em visita às confrades enclausuradas. O santuário, localizado na área do Parque Evaldo Cruz, no coração de Campina, é um refúgio aconchegante, rodeado de árvores frondosas, repleto de silêncio e paz. Ele é a morada de várias freiras, dentre as quais Irmã Tarcísia, batizada Rita Maria da Silva.

Quem é daqui, e já visitou o referido centro espiritual, foi, em algum momento, acolhido pela religiosa, que, juntamente com as congregadas Anunciada e Coleta, era, grosso modo, a intermediação entre a comunidade e as monjas que vivem no claustro. Entre a portaria e o altar, Ir. Tarcísia decorava velas e cartões, era habilidosa com o crochet e bordava peças em Richelieu. Seus talentos musicais também eram notórios. Com voz terna, nos enlevava, sobretudo cantando célebres melodias ou mesmo acompanhando ofícios e missas na serafina fanhosa. A sonoridade que nascia daquelas pequenas mãos era encantadora e nos fazia crer que, de fato, quem canta, reza duas vezes.

A minha conexão com o convento foi interrompida durante a temporada em que estive fora da Serra da Borborema, andando pelo mundo. Somente em 2006, após mais de vinte anos, tive o prazer de reencontrar a congregação, rever a comunidade e conhecer as novas habitantes da casa. Na ocasião, realizamos um concerto na capela central com o Madrigal e o Coro Feminino da UFPI, que estavam em turnê pela Paraíba. Foi um momento ímpar, de muitas bênçãos, de grande alegria. Depois disso, nosso contato intensificou-se e, quando nos mudamos para a Rainha da Borborema, em 2009, passamos a visitar aquele espaço sagrado frequentemente, ajudando-as nas tarefas musicais, oferecendo-lhes os concertos do Festival Internacional de Música (FIMUS), buscando equilíbrio e proteção.

Recentemente, encontrei-me com Irmã Tarcísia no templo, aguardando o início das vésperas. Como de costume, estava sentada no primeiro banco e nos cumprimentou com alegria, curvando-se, beijando nossas mãos. Espantou-se com a altura de Vinicius e elogiou a beleza de Jane e Sofia. Falamos brevemente e nos despedimos sem pressa, confiantes no reencontro. Não sabíamos, entretanto, que aquela seria nossa última conversa. Hoje, dia de Santa Rita, ao amanhecer, ela encerrou sua viagem terrena. Imediatamente, lembrei-me do dia em que me deu de presente dois livros, quais sejam, Cecília, um manual de cânticos religiosos, e o Liber Usualis, alegando que eu faria melhor uso de tais obras. Pensei nas dores dos que integram aquela irmandade, agora incompleta, e no exemplo que deixara, afinal foram mais de seis décadas de vida religiosa, como franciscana, inspirando tantos, inclusive a minha pessoa. Agradeci-lhe por tudo, com o espírito em festa, com a certeza de que a sua missão terrena fora cumprida exemplarmente. Adeus, Irmã Tarcísia.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 19 de maio de 2019

Cantando a história do FIMUS

Como sempre ocorre, abrimos e/ou encerramos o Festival Internacional de Música de Campina Grande interpretando uma obra de referência da literatura coral. Nosso objetivo é oferecer ao público e aos intérpretes, de modo geral, o contato com diferentes sonoridades, ampliando as possibilidades de escuta. Entretanto, é com base nos recursos financeiros e humanos disponíveis que escolhemos o que cantar, conciliando, sempre que possível, o repertório standard com novas composições. 

Dentre as masterpieces que já cantamos, ao longo desses dez anos, estão Divina Trilogia, Op. 77, Credo, Op. 148 (Liduino Pitombeira) e Serenade to Music (Ralph Vaughan Williams), em 2010; Missa em Sol (Franz Schubert) e Réquiem para um Trombone (Eli-Eri Moura), em 2011; extratos da Missa de Alcaçus (Danilo Guanais), em 2012; Requiem (Gabriel Fauré), em 2013; Paixão Segundo Alcaçus (Danilo Guanais), Five Mystical Songs (Ralph Vaughan Williams), Magnificat-Alleluia (Heitor Villa-Lobos) e, por conta do sesquicentenário da Rainha da Borborema, o Hino de Campina Grande, em 2014; Gloria (John Rutter), em 2015; Misa Criolla (Ariel Ramirez), em 2016; Missa de Alcaçus, na versão para solistas, coro, piano e percussão, em 2017; e Messa di Gloria (G. Puccini), em 2018.

Nas primeiras edições, apenas o Coro em Canto e o Coro de Câmara de Campina Grande compartilharam esses momentos. Com o tempo, outros grupos visitantes, a exemplo do Texas A & M University Chorale e o University of Central Oklahoma Chorale, também passaram a participar desses espaços de congraçamento, que foram conduzidos por mim e outros maestros, incluindo norte-americanos (Gary Packwood, Kenneth Fulton, Karl Nelson e Sara Lynn Baird), europeus (Matthias Heep) e brasileiros (André Muniz). Algumas obras foram acompanhadas por piano, enquanto outras com grupos de câmara e orquestras, convidadas e/ou formadas por alunos e professores do Festival. A música latino-americana, nacional e regional tem lugar assegurado nessa seleção, contribuindo para a divulgação dos nossos compositores.

Este ano, dentro da programação do FIMUS, realizaremos também o segundo Festival Internacional de Coros da UFCG, ocasião na qual ouviremos o Coro em Canto, regido por Lemuel Guerra; o Coro de Câmara, sob minha liderança; o Loiret’s Singers, da França, sob a direção artística da soprano Julie Cássia Cavalcante; e o Gesang ohne Grenzen (Canto Sem Fronteiras), da Suíça, sob o comando do maestro Matthias Heep. Durante quatro dias, a literatura coral de diferentes países, períodos e estilos ecoará por entre as montanhas da Serra. À semelhança do que ocorreu no FIMUS Europa, em Lisboa, faremos a estreia, em nosso país, de Domingo de RamosA Cachoeira de Paulo Afonso, ambas de Danilo Guanais, a primeira para coro a cappella e a segunda, baseada no poema homônimo de Castro Alves, para solistas, coro misto, quinteto de cordas e piano. Continuemos, pois, cantando a história do FIMUS.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Réquiem Contestado

O Réquiem Contestado é uma composição de Eli-Eri Moura sobre o texto das exéquias latinas com adições de W. J. Solha. Dedicada à memória de Franklin Albuquerque de Moura, sobrinho do compositor, é uma obra para narrador, solistas (soprano e tenor), coro misto e orquestra de câmara (flauta, oboé, clarinete, fagote, órgão, percussão e cordas), dividida em várias partes, a saber: Introitus, Kyrie, Non credo, Confiteor, Gloria, Dies irae, Rex tremendae, Confutatis, Communio e Sanctus.

A estreia ocorreu na primeira semana de novembro de 1993, no Teatro Santa Roza. (Curiosamente, nesse mesmo período, o ex-governador da Paraíba, Tarcísio de Miranda Burity, fora baleado no Restaurante Gulliver, por seu adversário político, Ronaldo Cunha Lima, por conta de questões pessoais.) Participaram da world première Vianey Santos, Wanini Emery, Tião Braga, Coral Universitário da Paraíba Gazzi de Sá e a orquestra de câmara, formada pelo Quinteto da Paraíba, Quinteto de Sopros Latino Americano e outros músicos convidados, tendo o próprio Eli-Eri Moura como regente (programa). A peça também foi interpretada em Campina Grande. Posteriormente, o CORALUP incorporou alguns movimentos ao seu repertório, apresentando-os frequentemente. Com o apoio da UFPB e da FIEP, o registro fonográfico foi feito no Cine Banguê, no Espaço Cultural José Lins do Rego, vinculado à FUNESC, na capital paraibana, em julho de 1995 (gravação, encarte). Vários profissionais se envolveram neste processo, incluindo Odair Salgueiro (Gravação), Tovinho (Masterização), Gustavo Moura (Fotografia), Ricardo Peregrino (Direção de Produção) e Wilson Guerreiro e Marconi França (Design Gráfico).

A relevância do Réquiem Contestado para a literatura coral-sinfônica é assegurada por seus aspectos literários e musicais. Teologicamente, os versos de Solha potencializam o conflito entre a soberania de Deus e a liberdade do homem. A inserção do Gloria, Confiteor e Credo acentuam o caráter reflexivo da peça, tendo em vista que tais passagens não integram o texto original da liturgia fúnebre. A orquestração, as passagens para solistas, a estrutura harmônica e a recorrência às danças renascentistas sublinham a inconfundível assinatura musical do seu autor.

Recentemente, recebi do compositor todos os manuscritos, incluindo as partes cavadas. Muito embora o material esteja bem escrito e preservado, existem movimentos incompletos e ainda não transcritos para a grade geral, que precisam ser revisados, tendo em vista as várias alterações que foram feitas entre a composição, os ensaios, a estreia e a gravação. Este trabalho musicológico e interpretativo será fundamental para a preservação da nossa memória, a difusão da arte paraibana contemporânea, bem como a sua inserção no repertório de diferentes coros e orquestras. Eli-Eri Moura tem uma vasta produção de música coral e na qual se inserem o Réquiem para um Trombone e o Réquiem Contestado, que, finalmente, após vinte e seis anos engavetado, será revisado, editado, publicado e oferecido novamente ao público.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)