domingo, 17 de abril de 2011

Repensando o ensaio coral

Para assegurar a plenitude do processo de ensino-aprendizagem da prática coral é fundamental que a sala de ensaios seja preparada adequadamente. Deve-se cuidar da iluminação e da ventilação, natural e artificial, pois o conforto térmico contribui para o bem-estar do coro. O tratamento acústico do espaço é determinante para o sucesso do trabalho, influenciando na realização do repertório e na sonoridade coral. O espaço físico precisa ser adequado ao tamanho do coro e às atividades que serão desenvolvidas. Cadeiras, armários, mesas, quadros, além de outros equipamentos, tais como pianos, aparelhos de som e televisão, devem ser alocados em lugares estratégicos e acessíveis.

Na sala de ensaio, os cantores devem ter à disposição partituras legíveis e bem editadas, papel em branco, lápis e borracha. Estes recursos materiais podem ser utilizados para registrar as anotações pessoais e as observações do regente. Ao contrário daquilo que comumente ocorre na prática orquestral, coralistas ainda não desenvolveram o hábito de anotar as indicações do regente na partitura. É necessário estimulá-los, explicando-lhes as razões das solicitações ou comentários, fazendo com que eles compreendam o texto poético e musical das obras. Aproveitar cada momento deste encontro de permutas e aquisição de saberes é, portanto, o princípio norteador do fazer pedagógico do regente, porque no ensaio coral ocorre um intenso processo educativo, que é dialógico e fruto da parceria entre os cantores e o regente.

Para que o ensaio se torne significativo, seria interessante substituir, gradualmente, a ineficiente prática da aprendizagem por imitação e repetição, que comumente ocorre quando o cantor reproduz acriticamente aquilo que o regente lhe oferece, por uma forma mais consciente de aquisição do conhecimento, na qual o coralista possa dar uma contribuição mais efetiva e pessoal. O cantor, nesta perspectiva, passaria a agir proativamente, enumerando compassos, marcando respirações, solfejando partes e solucionando, sempre que possível e por conta própria, os problemas rítmicos, melódicos e vocais encontrados no repertório. Estas são iniciativas importantes que deveriam ser estimuladas e incorporadas à práxis cotidiana dos nossos coros. Certamente, os ensaios se tornariam mais instigantes, pois os conteúdos e desafios impostos pelo repertório seriam superados de forma sistemática, metódica, dinâmica, eficaz.

Recitais e concertos devem ser compreendidos, portanto, como os produtos finais do trabalho desenvolvido ao longo de vários ensaios criteriosamente planejados e organizados. Tais atividades artísticas são ferramentas de avaliação importantes para a consistência da interpretação musical. No entanto, concebê-las como primordiais, como meta e objetivo exclusivos da prática coral, significa transferir o foco de atenção do processo para o produto. Que o ensaio seja, assim, entendido como construção coletiva, contando, em todas as suas etapas, com a colaboração e o engajamento de cantores e regente, favorecendo o crescimento musical, vocal, intelectual, afetivo e emocional de todos.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com

domingo, 10 de abril de 2011

A feira

Sábado é dia de feira em Campina Grande. Pelas ruas da cidade, além dos campinenses, circulam aqueles que vivem no entorno da Rainha da Borborema, que se encontram para comprar e vender mercadorias, dinamizando a economia local. O trânsito fica ainda mais caótico, sobretudo onde se encontra o amplo e diversificado mercado central, que, como orgulhosamente dizem por aqui, é um dos maiores do Nordeste.
 
Na Vila Nova da Rainha, é possível encontrar uma grande variedade de plantas ornamentais, advindas do brejo paraibano e do agreste pernambucano. A policromia daquelas rosas e gérberas, sempre vivas, contrasta com a paisagem monocromática e inerte dos quiosques que vendem carnes e peixes. Ali, os animais eviscerados, decapitados e desossados espiam com os olhos semicerrados e bocas entreabertas, emitindo um grito silencioso, chamando a atenção para a fragilidade da condição humana, animal. Este emaranhado de gestos, olhares e odores seria o cenário perfeito para o nascimento de Jean-Baptiste Grenouille, personagem principal do filme Perfume – A história de um assassino, dirigido por Tom Tykwer.
 
Andando pelos becos e vielas, subindo e descendo ladeiras, ouve-se de tudo. De um lado ecoam os gritos dos vendedores e seus pregões, que Carl Orff, se ainda estivesse vivo e por aqui passasse, certamente os incluiria nos seus livros e métodos de educação musical. Do outro, o modalismo da cantoria de viola, do repente e do desafio que tanto fascinaram e influenciaram o compositor José Alberto Kaplan. Lá embaixo, na rua onde são comercializados pintos e galinhas e na qual, curiosamente, também estão localizados os bordéis, incluindo o que sobrou do Cassino Eldorado, o cabaré mais famoso e bem frequentado da cidade na primeira metade do século vinte, as radiolas tocam canções de amor de ontem e hoje.
 
A feira é um labirinto multisensorial, tablado de muitos conflitos, como mostrou Lourdes Ramalho na sua obra tragicômica, A Feira, já encenada diversas vezes no Brasil. Palco no qual brilharam Maria Pororoca, Carminha Vilar e Zefa Tributino, as damas do conhecido Eldorado, todas imortalizadas no Forró em Campina, de Jackson do Pandeiro, aquele ambiente mercantil evoca as práticas comerciais da Idade Moderna, o universo musical renascentista francês, a polifonia imitativa e descritiva da canção Les cris de Paris, de Clement Janequin. Assim como nA Feira de Caruaru, enaltecida pela dupla Onildo Almeida e Luiz Gonzaga, na feira de Campina, grande e sui generis como ela o é, “de tudo que há no mundo, nela tem pra vender.” Entre balaios, cores, aromas e sabores, a vida, livre como o mercado a céu aberto, é puro movimento, festa e fantasia nesta Feira de mangai, que em cada canto de rua tem um sanfoneiro fazendo floreio pra gente dançar.
 
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)