quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Vamos solfejar

Resguardadas as devidas proporções, a decodificação de partituras é uma ação complexa, que requer um refinamento cognitivo-motor similar àquele que nos é solicitado quando realizamos tarefas cotidianas, seja cozinhando, praticando esportes, fazendo reparos ou dirigindo veículos. Em todas essas situações, o nível de atenção/abstração é potencializado, aguçamos o olhar, calculamos distâncias, concebemos movimentos.

A aprendizagem do solfejo demanda tempo, planejamento, a correlação da teoria com a prática, a conexão corpo-mente. Logo, a leitura descontextualizada e inexpressiva de exercícios e obras deve ser banida de qualquer estratégia pretensamente eficiente. Ao agirmos de forma estéril e destituída de sentido, aumentamos o hiato que distancia o saber do fazer musical. Só a repetição, consciente e constante, pode assegurar a criação de hábitos e a (re) construção de imagens, que passarão a ser incorporadas ao nosso repertório gestual, tornando-se familiares, permitindo-nos agir com naturalidade, garantindo-nos domínio técnico. Sloboda, Sacks e Hargreaves são autoridades da área e muito dizem sobre o tema. A compreensão destes pressupostos, à luz da Psicologia Cognitiva, e a revisão das práticas sedimentadas, e ainda em voga, nos indicarão caminhos para a reversão dessa realidade, caracterizada, por exemplo, pelo alto índice de reprovação e evasão em disciplinas como Percepção Musical. Certamente, tais mudanças beneficiarão outros contextos. Com indivíduos perspicazes, este não-lugar, por onde transitam aqueles que nem leem nem escrevem o que cantam, tocam e ouvem, perderá a sua razão de ser/existir. Consequentemente, após a erradicação desse analfabetismo funcional, as relações de poder serão definidas sob um novo prisma, afetando a dinâmica dos ensembles e classes que dirigimos.

Averiguar nossa parcela de responsabilidade neste processo é, portanto, uma atitude imperativa. Se existem deficiências no desenvolvimento das habilidades perceptivas, precisamos corrigi-las. Cabe-nos rever de que modo atuamos; como selecionamos, organizamos e encadeamos conteúdos; que tipos de atividades executamos; o que estamos julgando nas avaliações; que livros adotamos; quais metas estabelecemos a curto, médio e longo prazo. Essa não é uma tarefa fácil. Há docentes/regentes estagnados, que se esqueceram que é possível reinventar-se, que continuam lecionando tal qual foram ensinados, reproduzindo modelos questionáveis, perpetuando mitos, potencializando temores, transferindo para outrem o peso do fracasso das suas próprias inconsistências, na área educacional, artística e profissional. Fujamos do lugar-comum, porque suas fronteiras sedutoras roçam o abismo da mediocridade.

Que nesta nova fase, possamos examinar a consciência e assumir o mea culpa, identificando equívocos, excessos e omissões. Que desenvolvamos estratégias que permitam otimizar a aquisição de conhecimentos, utilizando-se de tecnologia variada, valorizando os recursos digitais. Que repensemos os limites e as possibilidades do pragmatismo que a nossa atividade exige, acreditando que só o treinamento, realizado objetiva e sistematicamente, nos levará a uma performance proativa, sólida, eficaz, de alta qualidade. Então, vamos solfejar mais e melhor este ano.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)