terça-feira, 31 de dezembro de 2019

As Clarissas de Campina Grande

Hoje teve início o ano jubilar da congregação de Santa Clara em nossa cidade. Inspirado por Frei Tadeu Prost (OFM), e com o apoio do primeiro bispo da recém-criada Diocese de Campina Grande, Dom Anselmo Pietrulla (OFM), o Mosteiro foi instituído há setenta anos. As fundadoras eram norte-americanas (Cleveland, Ohio). Desde os primeiros contatos nos Estados Unidos até a efetivação do projeto, passando pelo seu planejamento, a arrecadação de recursos, a construção e a ocupação das instalações, que só ocorreu no dia 31 de dezembro de 1950, muitos se empenharam para o sucesso desta missão.

A casa religiosa, muito embora esteja localizada no coração da Rainha da Borborema, ao lado do Parque Evaldo Cruz, área bastante movimentada, é um local silencioso, propício à meditação e que abriga cerca de vinte e nove monjas enclausuradas, que vivem em espírito contemplativo e se dedicam quase que exclusivamente à oração. Diariamente, celebram-se missas sempre às seis da manhã. Além disso, ao longo do dia, as irmãs observam criteriosamente as Horas Canônicas. Nesse rito secular, o canto destaca-se. Aliás, a música é parte essencial daquela abadia.

A capela central, que comporta aproximadamente quatrocentas pessoas, é naturalmente iluminada. A luz, quando atravessa os coloridos vitrais, produz um efeito difuso, em tons delicados, sobretudo antes do crepúsculo. Acusticamente, o lugar é excepcional, o som se propaga facilmente, sem esforço, na medida certa. A madeira no teto torna o ambiente ainda mais acolhedor. O templo é ideal para conjuntos de câmara. Foi durante uma turnê do Madrigal da UFPI e do Coro Feminino da UFPI, em 2008, que passamos a utilizar este espaço sagrado. Depois, realizamos o Concerto para o Advento, o Concerto da Paixão, bem como aqueles ligados ao Festival Internacional de Música de Campina Grande. Por ali já passaram artistas como o cravista Edmundo Hora, a soprano estadunidense Kathy Price, o grupo de flautas-doce Quinta Essentia, o Quaternaglia Guitar Quartet, os coros Gesang ohne Grenzen (Suíça) e Loiret's Singers (França), dentre outros.

A comunidade de religiosas, incluindo as noviças e as que já fizeram votos temporários e perpétuos, participa ativamente de todas as celebrações, que são acompanhadas por instrumentos variados, como o piano/órgão digital, violão, flauta doce e, eventualmente, percussão. O repertório também é múltiplo e abarca tanto o tradicional, advindo do Liber Usualis e outras fontes históricas da Igreja Católica, quanto aquele produzido por artistas, padres, freiras e bandas contemporâneas. Para continuar o diálogo entre tradição e modernidade, e também marcar outra década de existência, as Clarissas de Campina Grande pretendem gravar um CD com obras autorais. As composições já estão prontas e os ensaios já começaram. Estamos à procura de parceiros, benfeitores. Agora, é só ajudar e esperar.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com

domingo, 29 de dezembro de 2019

A mágica da música

Este foi um ano intenso e de muitas estreias para o Coro de Câmara de Campina Grande (CCCG). Iniciamos a temporada com duas composições de Danilo Guanais. A primeira foi Domingo de Ramos, um conjunto de motetos sobre a paixão, morte e ressurreição de Cristo, para narrador e coro a cappella. Interpretamos esse ciclo em Portugal, antes da Semana Santa, no Festival de Ramos, com o Vox Laci, grupo anfitrião. A Cachoeira de Paulo Afonso veio em seguida. Composta para solistas, quinteto de cordas e piano, a peça tem várias seções que exploram diferentes afetos do poema de Castro Alves. Um ensemble internacional, formado pelo CCCG, o coral Gesang ohne Grenzen, o pianista Daniel Seixas e um quinteto de cordas com alunos da Universidade de Évora, participou da première.

Do compositor Eli-Eri Moura, montamos o Requiem dos Oprimidos e o Requiem Contestado. No primeiro, escrito em virtude do centenário de Jackson do Pandeiro e cuja estreia aconteceu no X Festival Internacional de Música de Campina Grande, dividimos o palco com o Iamaká. Nesse réquiem irreverente, o autor combina os textos canônicos das exéquias com passagens bíblicas que falam sobre a opressão, mantendo estreita correlação com a filosofia freiriana, sobretudo aquela contida na Pedagogia do Oprimido. Por outro lado, no Requiem Contestadocujo texto é de W. J. Solha e que não era interpretado desde a sua primeira performance, em 1993, os integrantes do CCCG participaram de diversas etapas do processo, ora editando os manuscritos, ora atuando como solistas, ao lado da Orquestra Sinfônica da UFPB.

Por conta dos dez anos da Licenciatura e do Bacharelado em Música da UFCG, apresentamos a Missa Diligite, de Camargo Guarnieri, com os alunos das referidas graduações e a Orquestra de Câmara da nossa instituição. Na mesma noite, estreamos o Credo, de Luís Passos, que, muito embora seja uma obra independente, igualmente serviu para completar o ordinário da referida missa.

Nesta temporada, realizamos quinze concertos em dez meses de trabalho, no exterior e no Brasil. Em Óbidos, Beja, Cascais e Lisboa, nos apresentamos em diferentes igrejas, no Palácio Foz e no Museu Nacional da Música. Aqui, cantamos em casa, no XI Virtuosi (Gravatá-PE), no XVI Festival Paraibano de Coros (João Pessoa-PB), no lançamento do The New Armorial Music Project (Natal-RN) e na Sala Radegundis Feitosa, na capital do estado. Além do repertório inédito e do intercâmbio com o grupo suíço, (re)encontramos o Loiret's Singers (França), resgatamos a Missa de Alcaçus e iniciamos as celebrações em torno dos 250 anos de nascimento de Beethoven com a sua Fantasia CoralEm 2020, o CCCG comemorará seu décimo aniversário. Neste tempo jubilar, realizaremos projetos variados e reafirmaremos nossas crenças, certos de que “quando a mágica da música reina e as palavras sagradas são ditas, o glorioso deve ser concebido, noite e tempestade se tornam luz.”

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 13 de outubro de 2019

Mestres, mentores, guias e anjos!

Comecei a frequentar os cursos de extensão do Departamento de Artes da UFPB, Campus II, em 1984, nas dependências do Teatro Municipal Severino Cabral. Ali, além de estudar de forma sistemática, conheci aqueles que foram as bases do meu fazer musical: Carlos Alan (Flauta Doce), Fernando Rangel (Teoria e Solfejo) e Fernando Barbosa (História da Música). Semanalmente, tínhamos dois encontros nos quais ocorriam as aulas de instrumento, matérias teóricas e prática de conjunto, atividade que congregava todos os alunos, muitos dos quais são meus amigos até hoje.

Eu estava tão motivado que, já no primeiro ano do curso, aprendi a tocar as flautas sopranino, soprano, contralto, tenor e baixo, razão pela qual fui convidado para participar de um quarteto, que ensaiava regularmente. Naqueles encontros, em que não víamos a hora passar, na companhia do meu professor, Romero Damião, Francisco Metri e Marconi Siqueira, executávamos os cadernos com peças polifônicas editadas por Pierre Phalèse, Pierre Attaingnant e muita música brasileira, heranças do repertório do Cordas e Sopros. A sonoridade modal e contrapontística me invadia, me transportava para uma época-lugar que eu ainda não (re)conhecera mas que me era profundamente íntima, que me falava diretamente à mente, ao corpo, ao coração. Essa relação com o mundo renascentista acentuou-se à medida em que passei a cantar o repertório francês do século dezesseis. Extasiado, pouco a pouco fui enveredando pelo caminho da harmonia, do contraponto e da regência, sobretudo depois que ingressei no FACMADRIGAL, sob a direção do maestro Antônio Sérgio Telles, e no 
De Repente Canto, conduzido por Fernando Rangel.

Quando Luceni Caetano chegou para substituir Fernando Farias, o Pintassilgo, descobri a flauta transversa, que também me deixou fascinado. Porque eu não possuía o instrumento, tive certa dificuldade no início dos estudos nessa área. Contudo, como a nova professora havia adquirido uma Muramatsu prateada recentemente, vendo o meu interesse, vendeu-me sua antiga Armstrong, repleta de histórias e com o qual fizera a caminhada artística-acadêmica até aquele ponto. Isso facilitou a minha vida enormemente. A fim de pagar o débito, fiz campanhas, recebi ajuda da família e dos amigos, toquei em bares, acompanhando Gera Brito, Emerson Uray e tantos outros.


Em meus gestos havia certa pressa, mas eu não estava afobado, pois sabia que era necessário deixar o tempo agir, construindo o que, de fato, já era latente e estaria para sempre comigo: o meu amor pela música. Luceni parecia compreender tudo aquilo e, muito mais que uma professora, foi determinante nessa travessia entre a flauta doce e a transversa, Campina Grande e João Pessoa, a extensão e a graduação, a minha casa e o mundo, abrindo portas, estimulando-me na busca pela excelência, como assim procedem os mestres, mentores, guias e anjos!


Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Lisette Oropesa, welcome to Brazil!

*O texto em Português está disponível aqui.

Soprano Lisette Oropesa will sing in South America for the first time. I had the opportunity to meet her in Baton Rouge, while I was at Louisiana State University for my DMA in Choral Conducting and Voice. We took part in several projects, including LSU A Cappella Choir, Chamber Singers, and the opera program with which we set up The Magic Flute (Mozart) and The Barber of Seville (Rossini).

During my second doctoral recital with Chamber Singers, I premiered Divina Trilogia, by composer Liduino Pitombeira. The piece, for soprano solo, SATB, violin, cello, piano and percussion, was written for that ensemble and, more specifically, for the voice of Lisette Oropesa that was the soloist. With LSU A Cappella Choir, we toured in the US as well as in Europe. In 2003, for example, we went to France, Italy and Austria. In Paris we performed twice. We sang the Mass in E-flat Major by Josef Rheinberger during the Eucharistic celebration at Notre Dame Cathedral and also at the Église de la Madaleine, where Gabriel Fauré had worked as an organist. In Austria, between Graz and Linz, we spent a couple of days in Vienna. We figured out that Placido Domingo was conducting Puccini's La Bohème at the Wiener Staatsoper. We rushed to buy our tickets. Because we had little money, the only place available was at the balcony on the top floor of that monumental theater. Although far way from stage, we rented a pair of binoculars to see the masters in action.

Later, we headed to the Linz International Choral Festival, under the direction of Dr. Kenneth Fulton. There Lisette, Lindsey Piatoly, Tim Kennedy, and I were the soloists for Joseph Haydn's Missa in Tempori Belli. Some US choirs joined the performance of the Paukenmesse at the Brucknerhaus. The orchestra had musicians from the Vienna and Czechoslovak Philharmonics. It was a unique experience in which we had the opportunity to make music, get connected, and share dreams.

After completing my doctorate, I returned home from where I have been following the trajectory of this phenomenon, from her arrival at the Metropolitan opera program in New York to her debut into La Scala in Milan, always alongside renowned performers. This week she will sing for the first time in our country in Rio de Janeiro (more information), which is why all these and many other stories have been revived with emotion in my memory. I wish I could be able to attend this concert. It would be great to hear and see her again. Unfortunately, I cannot because of my activities. Anyway, I would like to thank and congratulate you. The passion, beauty and poetry of your voice nurish our hopes, make us work for a better world, Lisette Oropesa. Welcome to Brazil!

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O Canto Coral na Paraíba: Antônio Guimarães

Antônio Guimarães Correia (Campina Grande-PB, 1934-2009), regente e compositor, desenvolveu intensa atividade na região polarizada pela Rainha da Borborema. Muito embora tenha recebido as primeiras lições musicais no seio familiar, com o pai e o tio-avô, foi em Maceió, no Seminário Santo Antônio, que recebeu formação sistemática dos Frades Menores Capuchinhos, estudando teoria, órgão e piano.

Ainda na capital alagoana, iniciou suas atividades profissionais como organista na Capela Santa Rita, no Farol. Posteriormente, quando fixou residência por aqui, no início da década de cinquenta, passou a reger corais, destacando-se o da Juventude Operária Católica (1957). O Coral Uirapuru (1959), muito embora tenha começado a funcionar como um grupo masculino, logo tornou-se um conjunto misto, com atuação intensa e ininterrupta por quase cinco anos, apresentando-se em várias cidades da Paraíba e outras regiões.

Como professor de Canto Orfeônico, o maestro trabalhou no Colégio Alfredo Dantas (1958), no Estadual de Campina Grande e na Escola Normal (1964), onde regeu um grupo com setenta normalistas. O Coral Uiraxuê (1969), pouco tempo após a sua criação, foi transformado no Coral Universitário da URNe (Universidade Regional do Nordeste). Um dos pontos altos da sua trajetória foi a época em que trabalhou na Fundação Artístico-Cultural Manuel Bandeira (FACMA), entidade na qual dirigiu o FACMADRIGAL (1970). Na abertura do primeiro Festival de Inverno de Campina Grande (FICG), no dia 2 de julho de 1976, conforme observa Mônica Hermínio, Antônio Guimarães regeu o Hino da Cidade (vídeo - partituras), com acompanhamento da Filarmônica Epitácio Pessoa, participando nos dias seguintes, com o Coral do Teatro Municipal Severino Cabral, do I Encontro de Corais do FICG, ao lado de outros regentes, a exemplo de Clóvis Pereira (Coral da UFPB – Campus I) e José Beltrão da Cunha Jr. (Madrigal do Recife).

Sob a perspectiva composicional, escreveu música sacra e secular, vocal e instrumental, destacando-se, nesse contexto, os hinos que compôs para sua terra natal e outros municípios, incluindo Malta, Coxixola e Puxinanã, todas em nosso estado, bem como vários educandários, dentre eles o Regina Coeli e o Moderno 11 de Outubro e os institutos Santa Luísa de Marillac e Nossa Senhora da Salete, este último dirigido pela professora e ativista cultural Eneida Agra Maracajá, a idealizadora e diretora do FICG. O maestro também escreveu arranjos baseados em temas da tradição oral e da música popular, e um livro, Música Para Todos, publicado pela editora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em 1983. Na semana em que celebramos os 155 anos de emancipação política da nossa cidade, o legado deste ilustre campinense nos leva a crer que, de fato, parte da “tua glória revive, Campina, na imagem dos homens [mulheres] audazes. Aguerridos [as] heróis [heroínas] de legendas, que marcaram as tuas fronteiras.”

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 5 de outubro de 2019

Em sintonia

Durante muito tempo, o Curso Condensado de Harmonia Tradicional - com predomínio de exercícios e o mínimo de regras, de Paul Hindemith, traduzido por Souza Lima e publicado pela editora Irmãos Vitale, foi uma obra de referência em nosso país. Eu, particularmente, adquiri um exemplar deste clássico na época em que estudava no DART-UFPB, Campus II, por volta de 1986. Trata-se de um manual técnico que aborda temas distintos, incluindo tríades, tétrades, progressões harmônicas, modulação, cadências, encadeamento das vozes. Muito embora ele tenha recebido críticas por conta do seu excessivo caráter tecnicista, a obra me ajudou a compreender essa dimensão do fazer musical.

Explorei-o quase por completo, praticando os exercícios vagarosamente, pois, como naquela altura já regia o Coral Viva Voz, do Centro Cultural, queria aplicar o conteúdo aprendido na elaboração de novo repertório para o meu grupo. Quando as dúvidas apareciam, recorria aos professores com os quais tinha aula na universidade, aos meus colegas ou profissionais mais experientes, a exemplo do maestro José Cavalcanti, que atenciosamente me ajudou algumas vezes. De modo progressivo, fui entendendo, criando coragem, aumentando a fé no que estava me propondo a fazer, sedimentando aquilo que Albert Bandura define como as crenças de auto-eficácia, esse mecanismo compreendido como a confiança na capacidade pessoal para organizar e executar certas ações.


Recentemente, organizando uma das pastas nas quais guardo documentos, encontrei um caderno com diversos arranjos que escrevi para coro misto a quatro vozes, entre 1987 e 1989, incluindo Dom de iludir (Caetano Veloso), Gente humilde (Garoto - Vinicius de Moraes - Chico Buarque), Brejeiro (Ernesto Nazareth), Veja (Vital Farias), Paz do meu amor (Luiz Vieira), Pout-pourri de choros (Vários autores), South American Way (Al Dubin - Jimmy McHugh), bem como outros do show Gerar, de Gera Brito, e Shy Moon (Caetano Veloso), versão para coro masculino.

O mais antigo é o da canção Em sintonia (veja a partitura), gravada por Padre Zezinho no LP Um certo galileu, que escrevi aos dezessete anos. Quer dizer, arranjo é uma forma genérica de classificar essa empreitada pioneira pelo campo da harmonia, porque eu me restringi apenas a encadear os acordes, conduzindo as vozes da forma mais próxima àquela proposta no vade-mécum de Paul Hindemith. A análise da partitura revela a predominância da textura homorrítmica, tão típica dos hinos, bem como certas inconsistências. Quintas paralelas à parte, a estreia da peça ocorreu num concerto que realizei no Museu de Arte Assis Chateaubriand, no largo do Açude Novo, com o objetivo de arrecadar dinheiro para pagar a minha recém-adquirida flauta transversa. Na ocasião, Elizanilda Ramalho foi a solista. Muito embora simples, essa iniciativa ratificava o  meu interesse pela composição, a minha sintonia com o Deus-Pai e a Mãe-Música.


Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com

domingo, 29 de setembro de 2019

Beethoven e Jackson do Pandeiro

Neste ano em que celebramos o centenário de nascimento de Jackson do Pandeiro, desenvolvi com os alunos da disciplina Percepção Musical IV, dos cursos de Música da Universidade Federal de Campina Grande, atividades específicas almejando ampliar o sentido das festividades em torno deste importante músico paraibano, apontando caminhos para a compreensão da sua produção. Ao longo do semestre, ouvimos várias obras que integram a discografia deste alagoa-grandense e que ratificam a sua versatilidade em diferentes territórios, razão pela qual recebeu a alcunha de Rei do Ritmo.

Iniciamos nosso projeto com a seleção do repertório, que contemplou aproximadamente quarenta títulos, dentre os quais A ordem é sambaTreze de maioDia de beijadaPapel crepomAquilo bomMorena belaBumba meu boiRainha de TambaRojão de BrasíliaXarope de amendoim e Babalaô, danças variadas, incluindo samba, marchinhas carnavalescas, rojão, xaxado, coco, maxixe, maracatu, polca, rancheira, reisado, baião, frevo e muito mais. Ouvimos as gravações originais, quase todas disponíveis em plataformas digitais. Graças aos recursos tecnológicos, conseguimos reduzir a velocidade de algumas execuções sem comprometer, com isso, a qualidade do áudio, o entendimento do texto poético-musical. Essa alteração foi crucial para elucidarmos detalhes do arranjo, de modo geral.

O processo de transcrição das obras foi lento e complexo, porque, nos fonogramas analisados, o intérprete nunca repete a melodia da mesma forma, isto é, há sempre um elemento novo, certa improvisação. Esse aspecto foi bastante desafiador, pois tivemos que decidir se transcreveríamos para a partitura as variantes ou se manteríamos apenas a estrutura padrão. Nesse encontro com o legado do artista, além dos aspectos musicais, nos debruçamos sobre uma grande variedade de temas, alguns prosaicos, outros bem singulares, crônicas de costume, fundamentalmente, que tratam dos mais variados assuntos, desde a fundação da Capital Federal, Brasília, até a história d’A mulher que virou homem, gravada no início dos anos sessenta, quando as discussões sobre gênero eram ainda incipientes.

Uma das composições que me chamou a atenção foi Sonata no frevo (vídeo - partitura)de Braz Marques e Roberto Silva, do álbum A alegria da casa!, um dos três lançados pela Philips em 1962. Ao ouvi-la, identifiquei elementos que me remeteram à Sonata para piano n° 14, Op. 27 n° 2, de Ludwig van Beethoven, a conhecida Sonata ao Luar (vídeo e partitura). A análise revelou uma conexão entre as duas peças, sob diferentes perspectivas. O recurso intertextual, presente no título e nos elementos rítmicos, melódicos e harmônicos da canção, reforça a ironia, a carnavalização, o dialogismo que aproxima/distancia Bonn de Recife, a música de concerto da popular, o frevo da Bossa Nova (ouça Silvério Pessoa), o Nordeste do Sudeste do Brasil, bem como esses dois grandes ícones, Beethoven e Jackson do Pandeiro.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 22 de setembro de 2019

Arriba, Vox Popvli!

No período em que morei em Teresina-PI, regi o Madrigal Vox Popvli, entre 1994 e 1995. Minha passagem pelo grupo ocorreu algum tempo após a saída do seu fundador, o maestro Lindembergh Pires, que fora transferido do Colégio São Francisco de Sales para colaborar com a Universidade Católica e como regente do Madrigal da UNICAP, em Recife-PE. O trabalho que ele realizou com aquele coro independente, formado por ex-alunos do educandário e pessoas da comunidade, foi primoroso. O conjunto possuía sólida base técnica e já havia cantado vasta literatura, incluindo obras clássicas do repertório europeu, estadunidense, latino-americano e brasileiro, de diferentes períodos,  autores e estilos.

O meu trabalho com o Madrigal foi desafiador. Procurei dar continuidade ao que já havia sido desenvolvido. Contudo, como sempre ocorre, o processo de adaptação não foi dos mais simples, tendo em vista o conflito existente entre o legado deixado pelo meu antecessor, a sua forma de pensar e agir, e o direcionamento que estava dando a partir daquele instante. Quem já passou por situações semelhantes sabe do que estou falando. Não é fácil e é natural que certo tipo de rejeição ocorra, especialmente quando se leva em consideração os laços emocionais e afetivos que permeiam a relação professor-aluno, regente-cantor.


Mesmo com certa resistência, nós nos reinventamos, quando começamos a conviver. Aos poucos, todos se adequaram e o coro foi produzindo um som ainda mais leve e brilhante, como gosto. Promovemos cursos de técnica vocal com o professor Zuinglio Faustino, da UnB. Por duas vezes, realizamos o tradicional concerto anual, em outubro (veja os programas). Cantamos em diversos lugares da capital como parte das propostas da Federação Piauiense de Conjuntos Corais – FPCC (veja a ata), entidade que reativamos naquele ano, uma das promotoras do Encontro de Corais de Teresina (ENCOTHE). Um dos momentos marcantes foi a nossa presença no XX Festival de Inverno de Campina Grande, quando fomos ovacionados pelo público (veja a crítica).

Em novembro de 1995, durante uma apresentação no Teatro 4 de Setembro, anunciei publicamente que aquele seria meu último concerto, minha despedida. Por conta do mestrado na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, era necessário afastar-se, pois, em breve, partiria para uma nova experiência. Minhas palavras foram recebidas com espanto pelo público e também pelos integrantes do conjunto, visto que ninguém sabia da minha decisão. Meus dois anos com esse maravilhoso coro foram intensos e eu jamais esquecerei o que vi, ouvi e vivi (veja as reportagens). Como nos versos da canção Póngale por las hileras, que interpretávamos com grande alegria encantando a plateia, arriba, Vox Popvli.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 25 de maio de 2019

A primeira lapingochada é minha!

Um dos maiores mananciais para a pesquisa da música de double entendre é indiscutivelmente o Renascimento. São inúmeros os exemplos desse tipo de repertório na literatura vocal do século dezesseis. O uso das onomatopeias e o emprego de refrãos compostos por sílabas neutras, dentre as quais fa-la-las e suas variantes, reforçam o perfil dúbio dos textos que muitas canções seculares evocam, ratificando aquilo que Bakhtin já preconizara, isto é, que a carnavalização é uma forma de contradiscurso, que provoca o riso e a reflexão de quem os enuncia/escuta.

Um villancico que ilustra bem esse processo é Dale si le das, moçuela de Carasa. Em todos os versos há sempre uma dúvida semântica que se estabelece pelo uso de trocadilhos: Otra mozuela, Teresica, mostrado me ha su cri[ca]... atura que llevaba bien criada (Outra jovem, Teresica, mostrou-me seu bichinho bem cuidado). A fermata sobre a sílaba cri, no substantivo criatura, seguida por breve pausa, sugere que a rima para Teresica seria crica, um dos sinônimos para a genitália feminina, na língua espanhola. Como ratifica Fiorin, a linguagem carnavalesca “é repleta de sarcasmos e insultos. No entanto, esses xingamentos e zombarias não têm caráter ofensivo, mas brincalhão.” Na renascença italiana e francesa isso ocorre frequentemente, basta analisar alguns madrigais ou as chansons de Clement Janequin.

A música popular brasileira, sobretudo aquela produzida aqui no Nordeste, explora essa temática de modo muito particular. O chamado forró de duplo sentido mantém-se vivo, intrigando-nos e ao mesmo tempo alegrando-nos com suas ironias e ambiguidades. Clemilda, Zenilton, João Gonçalves e Genival Lacerda, dentre outros, gravaram sucessos que ainda hoje nos fazem sorrir, pensar e dançar.

Zé da Onça, uma pérola de João do Vale, Abdias Filho e Adrian Caleiras, trilha do filme Rico ri à toa, dirigido pelo cineasta Roberto Farias, produção da Brasil Vita Filmes, é uma crônica de costumes que trata questões éticas e amorosas com leveza e escárnio. Nos versos da canção, uma mulher conversa com um homem, dizendo-lhe que o seu esposo está prestes a morrer. Comenta que, ao lado dele, a vida não é das melhores e que isso deverá piorar após a sua partida. Predador, como todo felino, e carregado de segundas intenções, diz-lhe que, caso fique viúva e decida contrair matrimônio mais uma vez, ela deveria dar-lhe a preferência, pois os dois dão certo e combinam “tal qual a boca de um bode.” O jogo dialógico do casal é permeado por ambivalências que são potencializadas até o final da narrativa, quando Sá Chiquinha, de forma ingênua e maliciosa, pergunta: "Se eu quiser me casar de novo, Zé, o que é que há?" E ele, quase descrente, mas eufórico, responde: "A primeira lapingochada é minha!”

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Adeus, Irmã Tarcísia.

Há muito tempo, frequento o Mosteiro Santa Clara. Essa aproximação com as Clarissas começou cedo, ao lado de Tia Lúcia em visita às confrades enclausuradas. O santuário, localizado na área do Parque Evaldo Cruz, no coração de Campina, é um refúgio aconchegante, rodeado de árvores frondosas, repleto de silêncio e paz. Ele é a morada de várias freiras, dentre as quais Irmã Tarcísia, batizada Rita Maria da Silva.

Quem é daqui, e já visitou o referido centro espiritual, foi, em algum momento, acolhido pela religiosa, que, juntamente com as congregadas Anunciada e Coleta, era, grosso modo, a intermediação entre a comunidade e as monjas que vivem no claustro. Entre a portaria e o altar, Ir. Tarcísia decorava velas e cartões, era habilidosa com o crochet e bordava peças em Richelieu. Seus talentos musicais também eram notórios. Com voz terna, nos enlevava, sobretudo cantando célebres melodias ou mesmo acompanhando ofícios e missas na serafina fanhosa. A sonoridade que nascia daquelas pequenas mãos era encantadora e nos fazia crer que, de fato, quem canta, reza duas vezes.

A minha conexão com o convento foi interrompida durante a temporada em que estive fora da Serra da Borborema, andando pelo mundo. Somente em 2006, após mais de vinte anos, tive o prazer de reencontrar a congregação, rever a comunidade e conhecer as novas habitantes da casa. Na ocasião, realizamos um concerto na capela central com o Madrigal e o Coro Feminino da UFPI, que estavam em turnê pela Paraíba. Foi um momento ímpar, de muitas bênçãos, de grande alegria. Depois disso, nosso contato intensificou-se e, quando nos mudamos para a Rainha da Borborema, em 2009, passamos a visitar aquele espaço sagrado frequentemente, ajudando-as nas tarefas musicais, oferecendo-lhes os concertos do Festival Internacional de Música (FIMUS), buscando equilíbrio e proteção.

Recentemente, encontrei-me com Irmã Tarcísia no templo, aguardando o início das vésperas. Como de costume, estava sentada no primeiro banco e nos cumprimentou com alegria, curvando-se, beijando nossas mãos. Espantou-se com a altura de Vinicius e elogiou a beleza de Jane e Sofia. Falamos brevemente e nos despedimos sem pressa, confiantes no reencontro. Não sabíamos, entretanto, que aquela seria nossa última conversa. Hoje, dia de Santa Rita, ao amanhecer, ela encerrou sua viagem terrena. Imediatamente, lembrei-me do dia em que me deu de presente dois livros, quais sejam, Cecília, um manual de cânticos religiosos, e o Liber Usualis, alegando que eu faria melhor uso de tais obras. Pensei nas dores dos que integram aquela irmandade, agora incompleta, e no exemplo que deixara, afinal foram mais de seis décadas de vida religiosa, como franciscana, inspirando tantos, inclusive a minha pessoa. Agradeci-lhe por tudo, com o espírito em festa, com a certeza de que a sua missão terrena fora cumprida exemplarmente. Adeus, Irmã Tarcísia.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 19 de maio de 2019

Cantando a história do FIMUS

Como sempre ocorre, abrimos e/ou encerramos o Festival Internacional de Música de Campina Grande interpretando uma obra de referência da literatura coral. Nosso objetivo é oferecer ao público e aos intérpretes, de modo geral, o contato com diferentes sonoridades, ampliando as possibilidades de escuta. Entretanto, é com base nos recursos financeiros e humanos disponíveis que escolhemos o que cantar, conciliando, sempre que possível, o repertório standard com novas composições. 

Dentre as masterpieces que já cantamos, ao longo desses dez anos, estão Divina Trilogia, Op. 77, Credo, Op. 148 (Liduino Pitombeira) e Serenade to Music (Ralph Vaughan Williams), em 2010; Missa em Sol (Franz Schubert) e Réquiem para um Trombone (Eli-Eri Moura), em 2011; extratos da Missa de Alcaçus (Danilo Guanais), em 2012; Requiem (Gabriel Fauré), em 2013; Paixão Segundo Alcaçus (Danilo Guanais), Five Mystical Songs (Ralph Vaughan Williams), Magnificat-Alleluia (Heitor Villa-Lobos) e, por conta do sesquicentenário da Rainha da Borborema, o Hino de Campina Grande, em 2014; Gloria (John Rutter), em 2015; Misa Criolla (Ariel Ramirez), em 2016; Missa de Alcaçus, na versão para solistas, coro, piano e percussão, em 2017; e Messa di Gloria (G. Puccini), em 2018.

Nas primeiras edições, apenas o Coro em Canto e o Coro de Câmara de Campina Grande compartilharam esses momentos. Com o tempo, outros grupos visitantes, a exemplo do Texas A & M University Chorale e o University of Central Oklahoma Chorale, também passaram a participar desses espaços de congraçamento, que foram conduzidos por mim e outros maestros, incluindo norte-americanos (Gary Packwood, Kenneth Fulton, Karl Nelson e Sara Lynn Baird), europeus (Matthias Heep) e brasileiros (André Muniz). Algumas obras foram acompanhadas por piano, enquanto outras com grupos de câmara e orquestras, convidadas e/ou formadas por alunos e professores do Festival. A música latino-americana, nacional e regional tem lugar assegurado nessa seleção, contribuindo para a divulgação dos nossos compositores.

Este ano, dentro da programação do FIMUS, realizaremos também o segundo Festival Internacional de Coros da UFCG, ocasião na qual ouviremos o Coro em Canto, regido por Lemuel Guerra; o Coro de Câmara, sob minha liderança; o Loiret’s Singers, da França, sob a direção artística da soprano Julie Cássia Cavalcante; e o Gesang ohne Grenzen (Canto Sem Fronteiras), da Suíça, sob o comando do maestro Matthias Heep. Durante quatro dias, a literatura coral de diferentes países, períodos e estilos ecoará por entre as montanhas da Serra. À semelhança do que ocorreu no FIMUS Europa, em Lisboa, faremos a estreia, em nosso país, de Domingo de RamosA Cachoeira de Paulo Afonso, ambas de Danilo Guanais, a primeira para coro a cappella e a segunda, baseada no poema homônimo de Castro Alves, para solistas, coro misto, quinteto de cordas e piano. Continuemos, pois, cantando a história do FIMUS.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Réquiem Contestado

O Réquiem Contestado é uma composição de Eli-Eri Moura sobre o texto das exéquias latinas com adições de W. J. Solha. Dedicada à memória de Franklin Albuquerque de Moura, sobrinho do compositor, é uma obra para narrador, solistas (soprano e tenor), coro misto e orquestra de câmara (flauta, oboé, clarinete, fagote, órgão, percussão e cordas), dividida em várias partes, a saber: Introitus, Kyrie, Non credo, Confiteor, Gloria, Dies irae, Rex tremendae, Confutatis, Communio e Sanctus.

A estreia ocorreu na primeira semana de novembro de 1993, no Teatro Santa Roza. (Curiosamente, nesse mesmo período, o ex-governador da Paraíba, Tarcísio de Miranda Burity, fora baleado no Restaurante Gulliver, por seu adversário político, Ronaldo Cunha Lima, por conta de questões pessoais.) Participaram da world première Vianey Santos, Wanini Emery, Tião Braga, Coral Universitário da Paraíba Gazzi de Sá e a orquestra de câmara, formada pelo Quinteto da Paraíba, Quinteto de Sopros Latino Americano e outros músicos convidados, tendo o próprio Eli-Eri Moura como regente (programa). A peça também foi interpretada em Campina Grande. Posteriormente, o CORALUP incorporou alguns movimentos ao seu repertório, apresentando-os frequentemente. Com o apoio da UFPB e da FIEP, o registro fonográfico foi feito no Cine Banguê, no Espaço Cultural José Lins do Rego, vinculado à FUNESC, na capital paraibana, em julho de 1995 (gravação, encarte). Vários profissionais se envolveram neste processo, incluindo Odair Salgueiro (Gravação), Tovinho (Masterização), Gustavo Moura (Fotografia), Ricardo Peregrino (Direção de Produção) e Wilson Guerreiro e Marconi França (Design Gráfico).

A relevância do Réquiem Contestado para a literatura coral-sinfônica é assegurada por seus aspectos literários e musicais. Teologicamente, os versos de Solha potencializam o conflito entre a soberania de Deus e a liberdade do homem. A inserção do Gloria, Confiteor e Credo acentuam o caráter reflexivo da peça, tendo em vista que tais passagens não integram o texto original da liturgia fúnebre. A orquestração, as passagens para solistas, a estrutura harmônica e a recorrência às danças renascentistas sublinham a inconfundível assinatura musical do seu autor.

Recentemente, recebi do compositor todos os manuscritos, incluindo as partes cavadas. Muito embora o material esteja bem escrito e preservado, existem movimentos incompletos e ainda não transcritos para a grade geral, que precisam ser revisados, tendo em vista as várias alterações que foram feitas entre a composição, os ensaios, a estreia e a gravação. Este trabalho musicológico e interpretativo será fundamental para a preservação da nossa memória, a difusão da arte paraibana contemporânea, bem como a sua inserção no repertório de diferentes coros e orquestras. Eli-Eri Moura tem uma vasta produção de música coral e na qual se inserem o Réquiem para um Trombone e o Réquiem Contestado, que, finalmente, após vinte e seis anos engavetado, será revisado, editado, publicado e oferecido novamente ao público.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 28 de abril de 2019

Palm Sunday Festival

(Para ler em Português, clique aqui.)

The Palm Sunday Festival, held by the Vox Laci institution in Portugal, is under the artistic direction of Myguel Santos e Castro. The event, which this year has reached its thirteenth edition and is dedicated to sacred music for a cappella choir, always takes place on the weekend before Easter. The idea is to promote the Catholic repertoire, including consecrated works and new compositions.

Every year, a conductor and a guest ensemble participate in the initiative. This year was my turn and, along with me, I brought the Campina Grande Chamber Choir and Danilo Guanais, who composed Domingo de Ramos, a collection of five motets (Pueri hebraeorum; Omnes gentes, plaudite manibus, iubilate Deo in voce exsultationis; Cum angelis; Lauda, Jerusalem; and Ingrediente Domino). In this set of interdependent works, he combines tradition and modernity, uniting the Latin sacred texts and Gregorian melodies with the décimas (tenths), a type of metric poem very popular in northeastern Brazil, which he wrote from his own hand. In the program notes, the composer says that the work is part of the realization of an ancient project to create a set of choral pieces alluding to the Passion of Christ. In his words, “as a starting point, this cycle joins Membra Jesu Nostri (2015) in a sense that it expresses my admiration for the faith that packs, nourishes and inspires people about this passage of Christian history. The work was not thought of as an element of a liturgy per se, functioning as a kind of artistic-musical metaphor of the dramatic tensions that are part of this liturgy. Still, its ideal space for realization is the church, given the acoustic realities that are often found in churches.”

Domingo de Ramos  enchants and at the same time challenges the performers, both conductors and singers, because of its expressive elements and its structure, which is rich in divisi and textures and with intense rhythmic, melodic and harmonic activity. This sweeping fascination, that is accentuated by such elements and the alternation between the lyrical and dramatic sections, was present throughout the preparation process, specially when we rehersed the grand chorale, as well as when we performed in Obidos, Beja, Lisbon and Cascais, moments in which the composer's voice echoed through the centuries-old walls of the temples, while he recited his verses. The select and attentive audience warmly welcomed us in every concert.

The Palm Sunday Festival is simple and sophisticated, is an unforgettable experience, is the meeting between music and mysticism, thanks to the care and love of Myguel Santos and Castro who, besides being conductor, is an entrepreneur, a dear friend, whose heart is huge, like the ocean that separates and connects us.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com

domingo, 21 de abril de 2019

Get prepared, folks!

The first edition of EuroFIMUS was held from 4 to 6 April. The event, created to celebrate the tenth anniversary of the Festival Internacional de Música de Campina Grande, featured musicians from Brazil and Europe, who performed at different places of the Portuguese capital, Lisbon.

The Coro de Câmara de Campina Grande opened the meeting interpreting the Mass of Alcaçus, by Danilo Guanais, in the famous Palácio Foz. With a crowded house, the group spread through the Praça dos Restauradores, a square in the heart of the village, the unique flavor of Danilo Guanais music, connecting the heritage from Northeast Brazil to its Iberian roots. This dialogue between local and universal elements is intriguing, charming.

In the Museu Nacional da Música, Andrea Teixeira (Flute) and Ivan Vilela (Viola Caipira) performed a very delicate program, including original compositions and arrangements. This rich, simple and sophisticated recital was, in fact, a show/lesson conducted by Professor Ivan Vilela. He is an expert and has been developing researches about the transit of the viola caipira and all its variants, focusing on the route between Portugal and Brazil from the time of the colonization until nowadays. The Swiss choir Gesang ohne Grenzen, directed by composer and conductor Matthias Heep, sang secular and sacred music. Both Swiss and Brazilian ensembles performed unitedly the premiere of Matthias Heep’s motet In Monte Oliveti. The work, a cappella and in Portuguese, has floating rhythms and harmonies, which translate the stressed environment that preceded the arrest of Christ in Gethsemane. Accompanied by Olivia Steimel, the Swiss choir also performed other contemporary pieces exploring the combination between voices and the accordion, an unusual fact in the choral literature. Often, this instrument is used only as harmonic and rhythmic support for popular and traditional music, especially those in a dancing style. In this case, particularly, it was a fundamental part of the polyphonic construction, reiterating the different aspects of the musical narrative, employing both traditional as well as modern, expanded techniques. Undoubtedly, it was a memorable performance.

On the last day, Danilo Guanais lectured about his newest work, A Cachoeira de Paulo Afonso, written for soprano and bass soloists, SATB, string quintet and piano, and based on a poem written by Castro Alves. Following his speech, Swiss, Brazilian, and Portuguese musicians jointly performed it.


The accomplishment of this pioneering Festival was full of joy, grace, beauty, and friendship. Due to the support of several Brazilian and European institutions, we will continue to carry out this type of enterprise, which ignores limits and connects people, cultures, and nations through music. Would you like to join us? For the next EuroFIMUS edition, we are considering Switzerland, in 2021. From now on, it's time to get prepared, folks.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

Artistic Director - EuroFIMUS

sábado, 20 de abril de 2019

Cantemos, amemos e ressuscitemos

Quando viajo, costumo trazer objetos simples na mala, que guardam as recordações dos tempos e espaços que visito. Agora, em Portugal, não foi diferente. Em Covilhã, aos pés da Serra da Estrela, comprei o livro Musicofilia, de Oliver Sacks. A obra explora “o lugar que a música ocupa no cérebro e como é que ela afeta a condição humana.” Estou a degustá-lo lentamente, à semelhança de quem saboreia um Pastel de Belém com uma chávena de café, no entardecer alaranjado, às margens do Tejo.

A cada capítulo, sucessivos convites à reflexão, tal qual aquele dedicado à Música no cérebro: imagética e imaginação, em que o autor cita o depoimento de um dos seus correspondentes, que diz que todas as memórias da infância dele eram acompanhadas por uma banda sonora. Creio que todos nós, se calhar, temos uma trilha musical que nos acompanha, sublinhando, ou até mesmo sublimando, os vários instantes da nossa existência. Ponderando, e ao mesmo tempo envolto nesse ambiente Pascal, recordei-me das várias experiências musicais, afetivas e místicas que já vivi nessa época.


Lembrei-me de Irmã Aldete cantando Prova de amor, de José Weber, na Capela da Rua Dr. João Moura. Revivi o momento no qual aprendi a tocar Tomai, comei, um clássico de Waldeci Farias frequentemente interpretado na cerimônia do Lava-pés, uma das pérolas do hinário popular católico brasileiro. Essa foi a primeira melodia que toquei sem precisar anotar nada no papel, sem recorrer às bolinhas brancas e pretas que acompanhavam o manual de instruções da minha flauta doce. Para executá-la, seguia o som interno que se movia dentro de mim, entre a mente e o coração, seduzido pelo desafio técnico e o desejo de mostrar para Maria Ferreira, a amada tia-avó que me adotou como o filho que nunca tivera, que a partir de então eu poderia tocar-viver meu destino, baseado no tripé instinto-fé-conhecimento. Vários outros cânticos vieram à tona, todos carregados com a emoção do instante em que os ouvi pela primeira vez. Sozinho, na sala mental de concertos, conforme define o conceituado pesquisador, atuei como performer e ouvinte, transitei entre o altar e a congregação, o palco e a plateia, banhando-me nos ecos das reminiscências plenas de sentidos e verdades, dando graças àqueles que ressoam por entre as minhas reentrâncias, àqueles que me ensinaram a cultivar essa paixão pela vida, o belo, o sagrado, a música.


Oliver Sacks mudou a rotina deste sábado, que não é um dia qualquer, pois foi num Sábado Santo que selei a minha união amorosa com Jane Cely, essa mulher que exala beleza, encanto, bondade. Ao todo, já se passaram 31 anos de partilha, dos quais 26 em matrimônio. Por tudo o que sonhamos, vivemos e construímos, aleluias! Pela luz que ilumina incessantemente nossas memórias, cantemos, amemos e ressuscitemos, hoje, amanhã, sempre.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 10 de março de 2019

Parabéns, Coro de Câmara!

Há exatamente nove anos, o Coro de Câmara de Campina Grande estreava na sala BW4, da Unidade Acadêmica de Artes, da UFCG. Formado por alunos do recém criado curso de Música e pessoas da comunidade, o grupo, em sua apresentação inaugural, contava com doze integrantes e interpretou música renascentista acompanhado por um pequeno consorte de flautas e percussão.

Ao longo desse ciclo, a identidade do ensemble tem sido definida por suas propostas artísticas, educacionais e políticas. Somos um laboratório para os alunos da Licenciatura e do Bacharelado, sobretudo aqueles com ênfase em Regência e Canto. O repertório contempla variadas tendências estéticas e estilísticas, incluindo peças históricas, assim como material inédito, especialmente a nossa produção musical. Cantamos Palestrina, Bach, Mozart, Schubert, Fauré, Puccini, Hogan, Amaral Vieira, Reginaldo Carvalho, Eli-Eri Moura, Beetholven Cunha, Adriano de Sousa, dentre tantos outros nomes novos e conhecidos no cenário internacional. Nosso foco é a literatura original, a cappella ou com acompanhamento.

A experiência com outros corais, orquestras e maestros, brasileiros e estrangeiros, aqui e alhures, expandiu nossa percepção e a capacidade de adaptação e interação. Os desafios dos novos projetos transformaram-se em inspiração, planejamento, motivação, disciplina, resiliência e superação. Foi desse modo que encaramos a interpretação de obras complexas e que conseguimos subir ao palco nos EUA, França, Teresina, Fortaleza, Juazeiro do Norte, Natal, João Pessoa, Recife e São Paulo, sem falar nas várias cidades do interior da Paraíba. É por isso que, no próximo mês, iremos para Portugal, participar do EuroFIMUS Festival de Ramos. As barreiras burocráticas e as limitações financeiras nunca nos impediram de sonhar e concretizar nossos desejos. E assim sempre será.


Nessa trajetória repleta de beleza e encantamento, alegro-me por conviver e compartilhar saberes e fazeres musicais com pessoas engajadas e comprometidas, que vestem a camisa deste time com um enraizado sentido de pertencimento. Essa força vital, que nos impulsiona a atingir objetivos e metas, nos faz ensaiar com sol ou chuva, durante a semana ou em dias feriados; nos permite apresentar-se por entre as fileiras de um supermercado ou no Carnegie Hall; nos dá o prazer de cantar uma melodia natalina em uníssono ou de estrear A Cachoeira de Paulo Afonso, de Danilo Guanais; nos possibilita viajar de avião ou num micro-ônibus sem banheiro e ar condicionado, cruzando o sertão nordestino, vendo a beleza que é a transposição do Rio São Francisco, na época mais quente do ano, no chamado bê-erre-o-bró, em alusão aos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro. Em todas essas situações, eu nunca vi um semblante infeliz nos membros desta linda família. Ao contrário, tudo o que testemunhei foram gestos de devoção recíproca, verdadeira, e de um amor intenso pela música, o canto coral, a vida.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)