terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Ciclos

Chegamos ao final de mais um ciclo. É hora de parar, refletir, agradecer e planejar. Para o Coro de Câmara de Campina Grande, este foi mais um período de grandes realizações, fruto de muito esforço, empenho e dedicação.

Na Páscoa, apresentamos o Concerto da Paixão, no Mosteiro Santa Clara; no aniversário da Igreja Congregacional, o Festival dos Salmos e Hinos; na Primeira Igreja Batista, participamos da Noite da Voz. No Festival Internacional de Música de Campina Grande, estreamos a Paixão Segundo Alcaçus, de Danilo Guanais, obra para ator, solistas, coro e orquestra; cantamos em conjunto com o UCO Concert Chorale a première brasileira de Benedicite; no encerramento, juntamente com os demais participantes do evento, interpretamos várias obras, incluindo o hino de Campina Grande, por conta das celebrações do sesquicentenário (http://goo.gl/39vzF2). No segundo semestre vieram os recitais dos primeiros bacharéis em Regência graduados no estado da Paraíba e a participação na série Concertos do Nordeste, promovido pela PRODISC, com patrocínio do Banco do Nordeste e Ministério da Cultura. Voltamos para o Mosteiro, realizamos o quinto Concerto para o Advento e também para a Igreja Batista, tendo em vista o encerramento do Mês da Música. Por último, o Encontro de Coros da ENERGISA e a montagem da Cantata do Sol e da Lua, nas igrejas da região da Serra da Borborema. Para preparar esse eclético repertório, com música sacra e secular, literatura nova e tradicional, interagimos com diferentes músicos, o compositor Danilo Guanais e os maestros André Oliveira, Karl Nelson, Gunnar Silvestre, Jeter Maurício, Ulisses Azevedo, Jeonai Batista e Nelson Mathias. Cantamos em Campina Grande, João Pessoa, Natal e Juazeiro do Norte em igrejas e teatros, desbravando horizontes, selando novas parcerias.

Os projetos já estão definidos para o próximo ano. O maior deles é a turnê francesa que será realizada em abril. Durante uma semana, o grupo participará de um intercâmbio nas cidades de Olivet e Gien, apresentando música brasileira e também a Missa em Sol, de Franz Schubert, que será interpretada em conjunto com alunos e professores dos conservatórios das duas localidades.

Encerramos este ciclo agradecendo aos que contribuíram, de forma direta ou indireta, para a concretização das nossas metas. Iniciamos uma outra etapa com a missão de continuar transformando limites em possibilidades, sonhos em realidade. Que venham, portanto, o novo e seus desafios. Que a fé, a força, a coragem e a ousadia sejam abundantes. Se, por acaso, o temor aparecer, lembremos dos versos da canção Sol, do Jota Quest, que alegremente cantamos no nosso último encontro:  Ei, medo! Eu não te escuto mais. Você não me leva a nada. E se quiser saber pra onde eu vou, pra onde tenha sol, é pra lá que eu vou…”

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Mas o meu pires é de porcelana

Entre 1988 e 1992, estudei na Universidade Federal da Paraíba, Campus I, em João Pessoa. Foi o tempo da Licenciatura em Educação Artística, com habilitação em Música, época na qual também tive aulas de Composição com o professor José Alberto Kaplan, de Piano com Germana Vidal e de Técnica Vocal com Tika Porto. A Flauta Transversa, meu instrumento por mais de dez anos, ficou em segundo plano nesse período. Além dessas atividades, cantava no Coral Universitário da Paraíba “Gazzi de Sá” e também auxiliava o maestro Eli-Eri Moura.

Em 1989, quando Eli-Eri deixou a direção do coro para ingressar no mestrado em Composição na McGill University, no Canadá, assumi temporariamente, ao lado do colega Anderson Florentino, o CORALUP. Era assim que carinhosamente chamávamos o Gazzi de Sá. A tarefa não foi fácil, pois substituir alguém é sempre um grande desafio. E quando se trata de um coro o serviço é ainda mais delicado, especialmente por conta das relações de poder que se estabelecem entre o ex-cantor, agora em posição de liderança, e seus colegas. O certo é que era preciso continuar o trabalho e manter o mesmo nível de excelência do grupo.

O CORALUP havia sido selecionado para participar de um festival em Córdoba, na Argentina. Estávamos empolgadíssimos, com tudo encaminhado, e o maestro havia nos orientado a não alterar os planos, mesmo com a saída dele. Continuamos a peregrinação pelos corredores da universidade, pedindo ajuda para viajar. Precisávamos do transporte, pois lá, na terra do tango, teríamos a hospedagem e a alimentação. Tomamos muito chá de cadeira, acompanhamos o Magnífico em várias solenidades, fomos ignorados e acalentados com promessas vazias. Depois de muita peleja, conseguimos o que queríamos. Viajamos de ônibus. Logo após cruzarmos Alagoas, o ar-condicionado quebrou. Passamos seis dias atravessando o Brasil, no meio do calor, parando para alguns concertos e muitos consertos. Na Argentina, fizemos sucesso com os Respingos, de Eli-Eri Moura e Paulo Leminski. Esse irreverente ciclo foi escrito para solistas, coro e banda, formada por trompete, baixo, teclado e bateria. Entramos para a história daquele tradicional encontro. O brilho dos flashes e o sol de verão não permitiram que a noite chegasse nem que o vento frio dos pampas, que invadia o ônibus por entre as frestas das janelas, congelasse nossos corações na viagem de volta.

Analisando o que vivenciei, percebo que muito pouco ou quase nada mudou. O discurso é o mesmo. Nossas instituições continuam sem recursos claramente definidos para a arte. Ainda prevalece, em muitos casos, a política do balcão, dos favores. Naquela época, estudante e sem trajetória, eu pedia com um pires de plástico à mão. Hoje, continuo pedinte, mendigando à procura de apoio, mas o meu pires é de porcelana.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Beethoven, Schiller e Irmã Dulce

A Sinfonia Nº 9, em Ré menor, Opus 125, de Ludwig van Beethoven, é uma obra de referência dentro da literatura sinfônica. A composição, em quatro movimentos, foi finalizada em 1824 e é singular em vários aspectos, destacando-se, sobretudo, pelo último movimento, escrito, de forma pioneira, para quarteto vocal solista, coro e orquestra. O texto, de Friedrich Schiller, também conhecido como Ode à Alegria, é uma canção de júbilo e esperança, que exalta o amor universal. Esta é uma das sinfonias mais interpretadas nas salas de concertos ao redor do mundo. No Brasil, só neste mês de dezembro, sabe-se que a Nona Sinfonia foi apresentada em várias cidades, incluindo Curitiba, Recife e Salvador.

Em Salvador, tive a oportunidade de atuar como solista na montagem que foi organizada pelo maestro José Maurício Valle Brandão. O empreendimento contou com a participação dos solistas Izadora França (soprano), Vanda Otero (mezzo) e Angelo Dias (barítono); do Madrigal e da Orquestra da UFBA; da Associação Lírica da Bahia (ALBA); e dos músicos que integram os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (NEOJIBA). Ao todo, foram realizadas duas récitas, sendo uma no Salão Nobre da Reitoria da UFBA e outra no Teatro Castro Alves, ambas com entrada gratuita e público excedente.

Ao longo de uma semana em Salvador, entre ensaios e encontros, interagindo com músicos e plateia, tive a oportunidade de experimentar, mais uma vez, o poder que a música tem de mover as emoções. Essa vivência foi potencializada, provocando catarse, renovando utopias. Ao lado do amigo Angelo Dias, conheci parte do trabalho construído por Irmã Dulce (https://www.irmadulce.org.br). Na visita que fizemos ao complexo hospitalar e ao memorial, localizado na Cidade Baixa, nos arredores do Bonfim, acompanhamos os vários passos de uma trajetória de amor e doação, testemunhamos a história de uma vida dedicada ao próximo, às causas sociais, à construção de um mundo mais humano e fraterno.

Por isso, ressignificamos nossa atuação como intérpretes, extrapolando os limites linguísticos da partitura e do texto poético, dando sentido, como preconiza Keith Swanwick, às nossas experiências musicais. Mais que notas, ritmos e frases, cantamos a vida, compartilhamos sentimentos, vivemos um momento único da condição humana, ignorando as diferenças, sublinhando as equivalências. A obra de Beethoven, o texto de Schiller e o legado de Irmã Dulce são revelações da face mais sublime e divina da nossa existência, do Criador. Os mais de duzentos músicos no palco, incluindo pessoas inseridas em diferentes realidades econômicas, sociais e culturais, motivados pela alegria que a música provoca, reiteraram a força ecumênica dos nossos gestos, ratificaram a premissa de que aquilo que nos une é mais forte que aquilo que nos separa, fizeram toda a diferença nesse Natal.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

*Para os amigos José Maurício Valle Brandão e Angelo Dias.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Cantata do Sol e da Lua

A Cantata do Sol e da Lua é um cordel baseado nas escrituras sagradas e narra a trajetória de Jesus. O texto está dividido em cinco partes, incluindo a anunciação à Maria, o nascimento na estrebaria, a visita dos três reis magos, a fuga para o Egito, as ações de Cristo na Galileia.

As músicas, compostas de forma independente e em períodos distintos, foram concebidas originalmente para coro infantil, em uníssono, com acompanhamento harmônico. Motivado pelos desafios da diretora da escola na qual meu filhos estudavam, comecei a compor canções para os projetos de Natal daquele educandário, sempre numa perspectiva lúdica e didático-pedagógica, explorando variados elementos musicais. Por isso, algumas canções são modais (Maria é a mãe de Jesus de Nazaré e O bercinho) e evocam a ambiência melódico-harmônica do Nordeste, bem como os seus ritmos mais comuns, a exemplo do xote (O burrinho) e do baião (Belém, Belém, blem, blem). Três reizinhos é uma canção pentatônica, enquanto Noite de amor é uma valsa com harmonia jazzística. Jesus nasceu, peça que inaugura o ciclo, é baseada no tema da ária Qui sedes ad dexteram patris, da Missa em Si Menor, de Johann Sebastian Bach. Todas as canções apresentam cômodo âmbito vocal e podem ser transpostas, adequando-se à realidade vocal dos intérpretes, sejam solistas-atores ou um grupo de cantores. Muito embora concebidas para vozes infantis, as obras podem ser interpretadas por adultos, tanto na versão original quanto na versão polifônica, essa última escrita para duas e três vozes com instrumentos (flauta, clarinete, saxofone e percussão).

Ano passado, resolvi agrupar as canções e escrever um texto para unificar a obra, dando origem, assim, a Cantata do Sol e da Lua. Para a montagem inicial, convidei o Grupo Teatro Bodega, que tem se dedicado ao trabalho de contação de histórias, misturando teatro tradicional e de rua com a linguagem dos clowns. As duas atrizes que interpretam o Sol e a Lua recitam, dançam, pulam, correm e interagem com músicos e plateia, criando uma ambiência lírica e ao mesmo tempo recheada de bom humor e irreverência. Além das músicas originais, a trilha incidental inclui temas do pastoril extraídos do Cancioneiro Paraibano. 

Neste espetáculo, o Sol e a Lua recontam a história de Jesus, falando sobre guerra e paz, realidade e utopia, combinando elementos sagrados e seculares, tradicionais e modernos, universais e regionais. A narrativa é dinâmica e as passagens bíblicas são o ponto de partida para reflexões sobre corrupção, consumismo e preconceito. A desafiadora tarefa de falar sobre esse tema fez brotar, ao longo dos séculos, obras variadas, algumas complexas, outras simples, como esta cantata, um jogo dramático vivido intensamente pelos  intérpretes, neste caso o Grupo Teatro Bodega e o Coro de Câmara de Campina Grande.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Refletor

O Refletor, de José Alberto Kaplan, é uma ópera de câmara para solistas, coro e piano, composta entre dezembro de 1987 e junho de 1988, baseada na peça Lux in Tenebris, escrita em 1919 por Bertolt Brecht. Além dos protagonistas, João (tenor) e a Cafetina (soprano), integram o elenco uma Mulher (soprano), a Repórter (mezzo-soprano), o Ajudante (barítono), um Homem (baixo), o Capelão (baixo) e o coro misto e o de vozes femininas. A estreia ocorreu no Teatro Guaíra, em Curitiba, Paraná, no dia 16 de agosto de 1988, tendo sido apresentada posteriormente no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, no dia 23 de agosto do mesmo ano.

A ópera, divida em três quadros, é ambientada na zona do meretrício. No primeiro quadro, João convida a população para assistir à sua palestra, na qual serão tratados os problemas decorrentes da prostituição, a exemplo das doenças sexualmente transmissíveis. No segundo quadro, a Cafetina fala com João e pede-lhe desculpas por um pequeno mal-entendido ocorrido, anos atrás, quando João, confundido com um baderneiro, fora expulso do bordel. Ele parece aceitar as desculpas da Cafetina, alegando que não guardava rancor. O último quadro inicia com João, que está preocupado com a calmaria da rua, antes tão agitada, e o pouco movimento nos bordeis, que estavam em falência em virtude da luz que ele trouxera àquela região. A Cafetina entra em cena e inicia um longo diálogo com João, mostrando-lhe que os negócios que eles dois gerenciam são, na verdade, as duas faces de uma mesma moeda. O embate entre João e a Cafetina ganha força quando ela diz que João, agindo daquela forma, vai acabar com o bordel e também por fim ao seu negócio de Profeta de Israel. A Cafetina propõe uma parceria e convence João, afirmando que todos os problemas do passado já foram superados.

O Refletor é uma ópera intertextual. Kaplan cita trechos conhecidos de várias obras, dentre as quais Carmem (Bizet), Pompa e Circunstância (Elgar), a Marcha Fúnebre (Chopin), bem como o hino da revolução francesa. Todos esses elementos reforçam o caráter irônico e crítico do enredo, provocando o riso incômodo. A catarse brechtiana evidencia os conflitos éticos e morais da vida social, sobretudo quando o foco são os interesses pessoais, o dinheiro, a religião, o sexo e o poder.

Os resultados da pesquisa inicial sobre essa obra, ainda pouco conhecida do público brasileiro, foram apresentados no XXIV Congresso da ANPPOM sob o título Riso e estranhamento na ópera O Refletor, de José Alberto Kaplan. Recentemente, interpretamos alguns trechos na série de Concertos SESC Partituras (assista ao vídeoveja a partitura). Nossa meta é apresentá-la integralmente, divulgando a nossa produção operística.


Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 13 de setembro de 2014

A nova safra de regentes da Paraíba

A Universidade Federal de Campina Grande está colocando no mercado de trabalho os três primeiros Bachareis em Regência formados no estado da Paraíba: Gunnar Silvestre, Jeter Maurício e Ulisses Azevedo. Tive a oportunidade de acompanhá-los ao longo dos últimos quatro anos, pois foram meus alunos em diversas disciplinas e integrantes do Coro de Câmara de Campina Grande. Nesta caminhada, eles vivenciaram intensamente, de forma teórica e prática, as várias etapas do contínuo processo de formação da profissão que abraçaram. Como de praxe, para concluir o curso, cada um desenvolveu um projeto de pesquisa e apresentou um recital.

Gunnar Silvestre trabalhou com a obra do compositor paraibano Reginaldo Carvalho, que tem sido tema dos nossos estudos nos últimos anos. Juntos, analisamos As Flô de Puxinanã e A Cacimba, ambas com poema de Zé da Luz, nascido em Itabaiana. Focamos na relação música e texto, nas diferentes formas que o compositor usou para realçar os aspectos irônicos e satíricos da narrativa, o dito e o não-dito, o conflito entre tradição e modernidade. No concerto, no Museu Assis Chateaubriand, da UEPB, obras sacras e seculares, que nos permitiram viajar de Guarabira à Paris com e pela música de Reginaldo Carvalho.

Jeter Maurício investigou as atividades desenvolvidas no Coral da UFPB, Campus II, entre 1978 e 1982, período no qual o grupo estava sob a coordenação do maestro Nelson Mathias e da professora Célia Bretanha. Fundamentados nos pressupostos metodológicos da Nova História Cultural, realizamos entrevistas, analisamos documentos, fotos e programas no intuito de compreender, sob a perspectiva sócio-educativa-cultural, o trabalho realizado àquela época. No concerto, obras do repertório interpretado pelo Coral da UFPB, incluindo música da renascença, clássica, contemporânea e popular brasileira. Para ver de perto os resultados, convidamos Nelson Mathias e Célia Bretanha para acompanhar e participar do recital.

Ulisses Azevedo adentrou pelo universo da música coral sacra, analisando o trabalho de Nabor Nunes, outro paraibano de Itabaiana, que deixou vasto conjunto de obras para diferentes formações instrumentais e vocais. Por meio das entrevistas realizadas na capital paulista, onde ele viveu e trabalhou durante muitos anos, várias informações e documentos foram coletados, incluindo fotos, partituras, depoimentos de familiares, material importante para que pudéssemos realizar uma pesquisa inédita sobre esse compositor tão profícuo, mas ainda tão pouco conhecido. Além do famoso Pai-Nosso Sertanejo, Nabor Nunes escreveu muitas obras baseadas na música de tradição oral do Brasil, trabalho realizado em sintonia com os princípios da Teologia da Libertação. No recital, realizado na Primeira Igreja Batista, incluímos uma seleção das peças mais representativas do compositor. Parabéns à nova safra de regentes do estado da Paraíba. E que venham, portanto, novos desafios.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Técnica vocal e movimento corporal

O corpo em movimento: um estudo do gesto aplicado à técnica vocal é o título do trabalho apresentado, em conjunto com Merlia Helen Faustino da Silva, no Congresso da Associação Nacional de Pesquisa em Música (ANPPOM), realizado em São Paulo, capital, este ano. O artigo completo está disponível para download gratuito nos Anais do evento (http://goo.gl/oy7Hdh).

A pesquisa discute a relação entre movimento e som e teve como objetivo criar subsídios teóricos auxiliares à atuação dos regentes no trabalho de técnica vocal com coros. A primeira etapa abordou a fisiologia do movimento, o alongamento, o relaxamento e o aquecimento corporal e vocal. A segunda descreveu e analisou alguns exercícios que combinam som e movimento, fundamentado em autores como James Jordan, Henry Leck e Randy Stenson. Percebeu-se que há na literatura especializada uma forte preocupação com as diferentes fases de preparação do cantor, incluindo o aquecimento, o alongamento, o relaxamento e a realização de exercícios vocais que favoreçam uma atuação eficaz do intérprete. Muito embora as opiniões sejam divergentes quanto aos procedimentos, sequência e quantidade de exercícios usados para tal finalidade, vários autores convergem para a necessidade de desenvolver um amplo programa de treinamento baseado na estreita relação entre mente e corpo, tendo como objetivo a ampliação do repertório gestual do cantor, permitindo desta forma, uma atuação mais fluente, espontânea e, consequentemente, mais expressiva.

A combinação entre gestos e sons enriquece a prática musical, fazendo com que os cantores percebam as sutilezas do discurso musical, a importância de determinadas notas, acordes, frases, elementos textuais. Henry Leck, por exemplo, acredita que a inclusão dos gestos nas atividades de técnica vocal contribui para o aprimoramento da prática coral, baseado nos resultados obtidos em seus coros. Para ele, a fusão do som com o movimento corporal faz com que os cantores se expressaram mais livremente, tendo maior controle sobre a entonação, a homogeneidade, o ritmo, a dinâmica e a articulação. Além disso, cria um maior nível de comunicação entre os cantores, público e regente, promovendo uma grande experiência musical para todos os envolvidos.

A recorrência sistemática às metáforas e outras imagens estimula a exploração de diferentes sonoridades, evoca sensações específicas. A associação dos exercícios de aquecimento com os elementos propostos por Laban (peso, espaço, tempo fluência) contribui para tal finalidade, educando a inteligência musical e sinestésica. Para ver a aplicação prática da associação entre som e movimento, sugiro assistir alguns vídeos (http://goo.gl/iEsVYN e http://goo.gl/N8CsDd). O St. Mary’s International School Show Choir, regido por Randy Stenson, é conhecido por suas performances que combinam música e movimento (http://goo.gl/NtnDgu). A compreensão destes princípios está em consonância com a visão de música como uma forma de discurso impregnada de metáfora, conforme explica Keith Swanwick.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 31 de agosto de 2014

A música de concerto em Campina Grande

Em Campina Grande, nos últimos cinco anos, o espaço para a música de concerto ampliou-se. Vários fatores contribuíram para a definição deste quadro. A homologação da Lei 11.769/2008, que tornou obrigatório o ensino de música na educação básica, é um deles, muito embora ainda seja necessário discutir as práticas pedagógico-musicais em espaços formais e não-formais, públicos e privados, de forma geral, aqui na cidade.

Os cursos livres da FURNE, UEPB, UFCG e de algumas escolas particulares também deram uma grande contribuição, porque atendem a uma larga parcela da população, oportunizando a pessoas de diferentes faixas etárias e níveis sócio-econômico-culturais o acesso ao diversificado mundo da música. Nota-se que, gradualmente, muitos dos alunos oriundos de tais cursos ingressam na graduação em Música da Universidade Federal de Campina Grande, que, desde a sua implantação, em 2009, permitiu, portanto, a formação de vários profissionais, bem como o trânsito de nomes relevantes da música de concerto.

O mês de julho, este ano, foi uma verdadeira maratona na Serra. Começou com a retomada do projeto Segundas Musicais, no Auditório da Unidade Acadêmica de Arte e Mídia. Depois, veio o Festival Internacional de Música de Campina Grande, que é, provavelmente, o evento que mais traduz o nosso crescimento neste campo. Em seguida, o Sonora Brasil, do SESC, trouxe o Duo Cancionâncias, o Quinteto Brasília, o Polyphonia Khoros e o Quarteto Belmonte, cujas performances tiveram como foco a música de Edino Krieger. Na mesma semana, atores, solistas, coro e orquestra de câmara apresentaram a Cantata pra Alagamar, de Waldemar Solha e José Alberto Kaplan, que integra o banco do SESC Partituras. Na abertura do 39º Festival de Inverno, a Orquestra Sinfônica Jovem da Paraíba, sob a batuta do maestro Luís Carlos Durier, apresentou-se no palco montado na Praça da Bandeira.

Recentemente, a Comissão do Sesquicentenário, em parceria com o Instituto Cresce Campina, a Associação de Amigos do Teatro Municipal Severino Cabral e a Associação dos Amigos do Festival Internacional de Música de Campina Grande, iniciou o projeto Música no Parque. Os concertos, com caráter didático, serão realizados durante dez domingos, no Parque da Criança, sempre pela manhã, com duração média de uma hora, contemplando clássicos da literatura brasileira e internacional. É, portanto, dessa forma, com atividades gratuitas e diversificadas, em locais e horários acessíveis, que estamos trabalhando para expandir a vida musical na região da Rainha da Borborema. A democratização do acesso à arte, ao mesmo tempo em que amplia as opções de lazer e entretenimento da população, diverte, educa, favorece o intercâmbio entre estudantes e profissionais, estimula novas vocações, dinamiza a vida cultural e o mercado de trabalho, fortifica as ações do curso de Música da UFCG, contribui para a consolidação da cidadania e a formação do homem pleno.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 24 de agosto de 2014

O Canto Coral na Paraíba: Nelson Mathias e Célia Bretanha Junker

A década de setenta foi marcada pela expansão das atividades artístico-culturais na Universidade Federal da Paraíba. É desta época que data a criação do Núcleo de Extensão Cultural (NEC) do Campus II, em Campina Grande, que recebeu diferentes grupos e artistas, dentre os quais o maestro Nelson Mathias e a professora de técnica vocal Célia Bretanha Junker.

Convidados por Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque e Sebastião Vieira, respectivamente, Reitor e Pró-Reitor do Interior da UFPB, Nelson Mathias e Célia Bretanha Junker trabalharam com o Coral da UFPB, Campus II, entre 1978 e 1982. O grupo era heterogêneo e formado por cerca de setenta cantores, pessoas advindas da população universitária e da comunidade em geral. Os ensaios eram diários, de segunda a sexta, entre o final da tarde e o início da noite. As atividades eram múltiplas, abrangendo exercícios de relaxamento, técnica vocal, ensaios por naipes e coletivos, que tinham como objetivo desenvolver a musicalidade e a sonoridade do grupo. A estreia do coro aconteceu em 31 de agosto de 1978, quatro meses após a sua criação.

No repertório, obras da música renascentista à contemporânea, passando pela literatura folclórica e popular brasileira. Com essas canções o coro se apresentou em vários eventos artísticos e culturais da cidade, estado, região e país, conquistando, por exemplo, o segundo lugar no V Encontro de Corais de Recife. Naquele certame, o grupo concorreu com trinta e dois coros de diferentes partes do Brasil e, por este importante feito, recebeu o reconhecimento da crítica especializada e da população campinense. A vereadora Maria Lopes Barbosa apresentou, no dia 9 de novembro de 1978, por meio de requerimento aprovado pela Câmara Municipal de Campina Grande, voto de felicitações para o coro, solicitando que o fato fosse comunicado ao Magnífico Reitor. O prefeito Evaldo Cruz também ressaltou o êxito da segunda colocação, enaltecendo o trabalho do maestro e  dos cantores, destacando a vocação artística da Rainha da Borborema e da UFPB.

Ao longo da pesquisa que estamos desenvolvendo, coletamos histórias, documentos, fotos, programas e fitas K-7, nas quais estavam gravados os primeiros recitais. Por meio de tais materiais, analisamos o perfil do coro, a sua imagem e sonoridade, suas  práticas sócio-culturais-educativas e, finalmente, as contribuições do trabalho realizado pelo Coral da UFPB, Campus II, para a vida artística e cultural de Campina Grande, da Paraíba, do Nordeste e do Brasil. Nos dias 25, 26 e 27 de setembro, Nelson Mathias e Célia Bretanha Junker estarão na Serra da Borborema para conferir o resultado da investigação, reencontrar ex-cantores, amigos e fãs, reger o Coro de Câmara de Campina Grande e também falar sobre a vida, a música e o canto coral, esta arte apaixonante.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Um festival de alegria e paixão

A programação do V Festival Internacional de Música de Campina Grande, realizado entre os dias 21 e 26 de julho, foi intensa e variada.  Ao longo das mais de 40 horas de concerto foram interpretadas, aproximadamente, cento e vinte obras de compositores brasileiros, europeus, norte-americanos e asiáticos, incluindo repertório da renascença ao século XXI, priorizando a música de câmara, vocal e instrumental. Estima-se que cerca de quinze mil pessoas assistiram aos concertos que foram realizados no Teatro Municipal, no Mosteiro Santa Clara, na Primeira Igreja Batista, no Centro Pastoral, na cidade de Remígio. Todos os concertos foram transmitidos ao vivo, via internet.

Nessa edição, tivemos a oportunidade de estrear quatro obras: Paixão Segundo Alcaçus, de Danilo Guanais, para ator, coro, solistas e orquestra; Carroça de Tolda, de Nilceia Baroncelli, para voz e violão; Benedicite, de minha autoria, para coro misto e percussão; e Nebula, de Luís Passos, para clarineta e orquestra de cordas. A recém-formada Camerata da FURNE também teve a oportunidade de iniciar sua trajetória no palco do Municipal, no concerto de boas vindas, realizado no domingo anterior ao Festival, sob a regência de Gunnar Silvestre.


O público, sempre muito atento, acolheu com carinho os músicos e professores convidados. Repetidas vezes, ao término das apresentações, ouviu-se um insistente mais um. Foi assim que aconteceu em Remígio. Quando o BR Brass, do Conservatório de Tatuí, acabou a apresentação, a população e o prefeito Melchior Batista, contagiados com a energia daqueles jovens, quase não deixaram o quinteto sair do palco.


Alegria e paixão são, portanto, as palavras que definem mais uma versão do Festival Internacional de Música de Campina Grande. Nosso contentamento foi construído pouco a pouco. Começou com a arte de Alex Melo, que foi usada como tema do cartaz e programa e depois invadiu o foyer do Teatro Municipal Severino Cabral, revelando nossa diversidade, a riqueza de texturas, formas e cores do Nordeste do Brasil. Passou pela soprano Alzeny Nelo, que, com muita agilidade e bom humor, nos divertiu com as árias francesas. O Quinta Essentia também colaborou neste processo: enquanto eles choravam, tocando o Choro pro Fábio e Choro pro Zé, nós nos encantávamos, contemplando aquele espetáculo de pura beleza. Mas a festa não teria sido completa sem o BR Brass, coordenado pelo trompista Joaquim das Dores. Os meninos de Tatuí, de forma ingênua, leve e irreverente, intensificaram o caráter brincante do Festival e potencializaram a experiência sócio-cultural-afetiva que a música proporciona, sempre de forma intangível, indescritível, imensurável. Como diria o poeta Décio Pignatari, nos últimos dias nós pudemos ouviver a música em sua plenitude. Que nossa práxis musical seja sempre humanizadora, transbordante, sedutora, apaixonante.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

No aeroporto de San Antonio, Texas, a caminho do Brasil.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Paixão Segundo Alcaçus

A Paixão Segundo Alcaçus, de Danilo Guanais, é uma obra para ator, solistas, coro e orquestra, tendo como base o Evangelho de Marcos, o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, e poemas do próprio compositor. A obra, que é fruto da pesquisa de doutorado realizada na UNI-Rio, foi escrita entre 2011 e 2012, tendo sido apresentada parcialmente no Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), em agosto do ano passado, na cidade de Natal-RN.

Alcaçus, comunidade nos arredores da capital potiguar, é conhecida por seus romances. Essa forma poético-musical, que mantém estreita relação com as narrativas encontradas na península ibérica à época da nossa colonização, ainda hoje está presente na região Nordeste do Brasil. As histórias cantadas naquele lugarejo, passadas oralmente numa tradição secular, foram recolhidas e publicadas pelo pesquisador Deífilo Gurgel, no Romanceiro de AlcaçusDanilo Guanais utiliza várias melodias do romanceiro na sua Missa de Alcaçus (1996) e também na Paixão, ratificando suas conexões com a cultura popular, a música armorial.

Danilo Guanais harmoniza as melodias modais do Romanceiro utilizando uma técnica denominada descante dual, alternando sistematicamente consonâncias e dissonâncias, criando um fluxo contínuo de tensão/repouso. Além desse procedimento, emprega também um quadrado mágico para elaborar séries, construir sequências melódicas e progressões harmônicas, bem como definir os dezesseis instrumentos da obra, que estão divididos em quatro grupos, cada um com quatro músicos. O ator tem papel fundamental, assumindo, ao mesmo tempo, a voz do narrador e a voz do Cristo. Os solistas descrevem as etapas da paixão, realçando passagens do texto de Saramago e da Bíblia, sublinhando os conflitos entre o Homem-Comum e o Homem-Deus. Os poemas de Danilo Guanais, escritos como décimas no melhor estilo do martelo agalopado, resgatam os temas dos membra Jesu nostri, abordando as diferentes partes do corpo de Jesus crucificado: pés, joelhos, mãos, lados, peito, coração e cabeça.

A Paixão está dividida em onze movimentos e cada um descreve uma etapa da caminhada rumo ao Calvário. A percussão tem função relevante na criação dos momentos mais intensos e dramáticos da narrativa, enquanto as intervenções da flauta, do violão e do tenor solista, por exemplo, sublinham o lirismo que também lhe é inerente. Recentemente, Danilo Guanais esteve ensaiando conosco. Vê-lo, ouvi-lo e compreendê-lo foi uma experiência apaixonante, que, indiscutivelmente, contribuiu para estreitar os laços entre compositor e intérpretes no processo de preparação desta obra, cuja estreia ocorrerá na abertura do V Festival Internacional de Música de Campina Grande e da qual farei parte juntamente com João Marcelino (ator), Alzeny Nelo (soprano), Malu Mestrinho (mezzo-soprano), Luiz Kleber Queiroz (barítono), Coro de Câmara de Campina Grande e Orquestra Sinfônica da UFRN, todos sob a regência de André Luiz Muniz Oliveira.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

terça-feira, 3 de junho de 2014

O canto coral na Paraíba: Gazzi de Sá

Gazzi de Sá (1901-1981) é a referência do canto orfeônico na Paraíba, na primeira metade do século XX. Nascido em João Pessoa, morou em Salvador e no Rio de Janeiro, onde conheceu de perto o trabalho de Heitor Villa-Lobos. Trabalhou em dois importantes centros educacionais e culturais da capital paraibana: o Liceu e a Escola Anthenor Navarro. Educador, pianista e compositor, atuou também como regente, tendo criado e dirigido o Coral Villa-Lobos, de João Pessoa, cujo repertório incluía clássicos da literatura, assim como novos arranjos e obras, muitas das quais de sua autoria e baseadas na música de tradição oral. Parte deste material foi publicado pela Editora da Universidade Federal da Paraíba, na década de oitenta, sob o título Obras Completas, com apresentação do musicólogo Adhemar Nóbrega, da Academia Brasileira de Música.

No livro Método de Musicalização, Gazzi de Sá apresenta alguns dos seus conceitos no campo da educação musical, propondo, dentre outros temas, a associação entre movimento e som, o solfejo relativo e um sistema de notação musical alternativo. Luceni Caetano, da Universidade Federal da Paraíba, tem investigado a vida, a obra e o trabalho desenvolvido por Gazzi de Sá, preenchendo uma importante lacuna nesta área. O resultado de uma das pesquisas foi publicado em 2006, na sua tese de doutorado (http://goo.gl/xZo0RP), intitulada Gazzi de Sá compondo o prelúdio da educação musical na Paraíba: uma história da educação musical na Paraíba nas décadas de 30 a 50, lançada ano passado pela EDUFPB.

O acesso à música de Gazzi de Sá ainda é restrito, porque as poucas obras editadas estão esgotadas. Provavelmente, a maior parte do acervo disponível está guardado no Rio de Janeiro, mais especificamente no Centro Educacional de Niterói, local onde trabalhou Hermano Soares de Sá, filho do compositor, e onde atua o regente Luiz Carlos Peçanha, que tem se dedicado à interpretação da obra de Gazzi de Sá. O Grupo Tandaradei, com direção de Theresia de Oliveira, gravou, em 1986, um CD com várias obras do compositor paraibano e que está disponível na internet (http://goo.gl/0UfF1Q).

Gazzi de Sá harmonizou, como ele mesmo especifica nas partituras, muitas canções para coro feminino, dentre as quais Corre, corre, lacoxia, Rosa Amarela, Ó mana deix’eu ir e A maré encheu. Nessas obras chamam a atenção a vivacidade rítmica, as harmonias sofisticadas e o uso sistemático das onomatopeias (nan, tum, tim, blingue, bigue), comumente empregadas para fazer referência aos instrumentos de percussão e ao caráter dançante das músicas. Gazzi de Sá contribuiu para a expansão da literatura coral paraibana, sobretudo na primeira metade do século XX, e sua obra, porque é diversa e ainda pouco conhecida, precisa ser promovida, estudada e interpretada.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Cantata pra Alagamar

A Cantata pra Alagamar, com texto de W. J. Solha e música de José Alberto Kaplan, é uma obra para solistas, atores, coro misto e orquestra de câmara, escrita em 1979, tendo como tema o conflito ocorrido na Fazenda Alagamar, localizada entre os municípios de Salgado de São Félix e Itabaiana, na Paraíba. A estreia aconteceu em junho daquele ano e obteve ampla aceitação do público e da crítica. A primeira gravação (http://goo.gl/KjkuDZ), realizada no mesmo período, foi regida pelo compositor.

José Alberto Kaplan dialoga com as formas setecentistas, mantendo-se, ao mesmo tempo, em sintonia com a modernidade. Na Cantata pra Alagamar, o tenor exerce o papel do evangelista, ligando seções, comentando o texto, refletindo sobre suas entrelinhas, rica em conotações políticas. Com melodias nos modos lídio-mixolídio e amparado harmonicamente pelo cravo, o tenor é simultaneamente profeta, cantador, repentista, aboiador, revelando as conexões do compositor com a música de tradição oral do Nordeste. O coco, o baião, o triângulo e a zabumba, empregados em momentos estratégicos da narrativa, reiteram estes vínculos culturais. Os âmbitos vocais são cômodos, tanto para os solistas quanto para o coro, e a formação camerística, com poucos instrumentos, torna a obra acessível. A confluência de elementos universais e regionais, velhos e novos, potencializa os conflitos entre tradição e ruptura, ditadura e liberdade, tão acentuados na sociedade brasileira daquela época.

Participei da quinta série dos Concertos SESC Partituras, quando ocorreu o lançamento da edição revisada da Cantata. Antes do início do concerto, o maestro Carlos Anísio leu uma mensagem de Dom José Maria Pires, Arcebispo da Emérito da Paraíba, e que à época participou do projeto: “A Cantata é uma obra de arte realizada com coragem e muito amor. Coragem porque vivíamos, então, o tempo da Ditadura e qualquer manifestação pública estava sujeita à censura, de modo que a Cantata só pôde ser apresentada porque, para isso, foi cedida uma de nossas igrejas. A Cantata foi não só obra de coragem, mas sobretudo expressão de amor, um amor que ultrapassa fronteiras ideológicas e religiosas. A realização da Cantata só foi possível graças a um trio composto por um judeu, um ateu e um bispo. Num tempo de tanta violência, a Cantata vem proclamar que todos devemos lutar para que, respeitada a liberdade de pensamento de cada um, busquemos juntos transformar em convergências nossas divergências, contribuindo assim para que o mundo vá deixando de ser um vale de lágrimas e vá se aproximando da visão bíblica de um paraíso.”

A Cantata pra Alagamar é uma obra representativa da literatura coral brasileira e a partitura completa está disponível gratuitamente no site do SESC (http://goo.gl/cYyXJu), podendo, desta forma, ser interpretada por nossos grupos vocais e instrumentais.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)  

sábado, 24 de maio de 2014

Bancos de partituras na internet

A internet é uma ferramenta de grande utilidade no trabalho de preparação do regente coral, sobretudo no que diz respeito à pesquisa e à aquisição de repertório. Vários são os portais que têm divulgado, gratuita e legalmente, a literatura originalmente escrita para coro a cappella ou com acompanhamento. O Choral Public Domain Library (www.cpdl.org) e o IMSLP Petrucci Music Library (www.imslp.org), por exemplo, já são bem conhecidos no meio acadêmico. Com relação à música coral brasileira, quatro projetos têm se destacado nesta área: Musica Brasilis, Museu da Música de Mariana, Projeto Coral e SESC Partituras.

O Musica Brasilis (www.musicabrasilis.org.br) se dedica à difusão do repertório de diferentes épocas, estilos e autores. Além das partituras, no portal é possível encontrar áudios, vídeos e o recurso da escuta guiada, que apresenta informações importantes sobre as obras, tanto do ponto de vista estrutural quanto formal. Essa associação audiovisual colabora no processo de compreensão das peças. A FUNARTE também tem disponibilizado, por meio da plataforma Projeto Coral (www.funarte.gov.br/projetocoral/), obras para vozes afins e mistas, incluindo as coleções Música Nova do Brasil para Coro A Cappella e Arranjos Corais de Música Folclórica Brasileira, ambas publicadas nas décadas de setenta e oitenta. A produção mais recente da instituição, na qual se inserem as onze canções para coro juvenil (2009) e as oito canções para coro infantil (2010), também podem ser obtidas no site.

O Museu da Música de Mariana (www.mmmariana.com.br/abertura.htm), voltado para a pesquisa do repertório desde os tempos do Brasil Colônia, oferece, na seção Restauração e Difusão de Partituras, relevante patrimônio, destacando-se os seguintes projetos temáticos: Pentecostes, Missa e Sábado Santo (2001); Conceição e Assunção de Nossa Senhora, Natal e Quinta-Feira Santa (2002); Devocionário Popular dos Santos, Ladainha de Nossa Senhora e Música Fúnebre (2003). Todas as obras editadas estão também disponíveis em CDs, que foram gravados por ícones do canto coral no país, dentre os quais Naomi Munakata e Orquestra Engenho Barroco; Júlio Moretzsohn e o Grupo Calíope; Carlos Alberto Pinto Fonseca, Ars Nova Coral da UFMG e músicos convidados. O Projeto SESC Partituras (www.sesc.com.br/SescPartituras/) contém o trabalho de vários compositores, abrangendo música de câmara, sinfônica, coral e para solistas. Dentre os nomes já inseridos neste banco de dados estão os de Guerra-Peixe e Alberto Nepomuceno, cujos centenário e sequiscentenário, respectivamente, estamos comemorando este ano.

As iniciativas do Musica Brasilis, da FUNARTE, do Museu da Música de Mariana, do SESC Partituras e muitas outras não incluídas nesta lista preenchem uma lacuna importante no mercado editorial, contribuindo para a preservação da música coral brasileira, ampliando as possibilidades de escolha de repertório, promovendo o trabalho de compositores de diferentes épocas, estilos e regiões do país.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

terça-feira, 20 de maio de 2014

O Festival do Sesquicentenário

O recital do duo Malu Mestrinho (mezzo-soprano) e Marcelo Fernandes (violão), realizado no último dia 15 de maio no auditório da Unidade Acadêmica de Arte e Mídia, da Universidade Federal de Campina Grande, marcou o lançamento do V Festival Internacional de Música de Campina Grande, que acontece entre os dias 21 e 26 de julho.

Como nas edições anteriores, este ano o Festival recebe convidados do Brasil, dos Estados Unidos e da França, artistas e grupos renomados, incluindo o duo Mestrinho-Fernandes, o Quinta Essentia Quarteto de Flautas, o University of Central Oklahoma Chamber Choir, o Quinteto de Metais do Conservatório de Tatuí e a Orquestra Sinfônica da UFRN. A soprano Julie Cassie (França) apresentará um recital temático com canções francesas, enquanto o barítono Robert Glaubitz (EUA) interpretará árias de óperas. O clarinetista Joel Barbosa vem falar sobre o ensino de música nas bandas, apresentando aos alunos seu famoso método Da Capo. A programação homenageará o sesquicentenário de Campina Grande e os compositores Alberto Nepomuceno (1864-1920) e César Guerra-Peixe (1914-1993). O Prêmio Radegundis Feitosa será outorgado a José Antônio Rezende de Almeida Prado (1943-2010) por sua contribuição à música brasileira. Para recebê-lo, convidamos a pianista Helenice Audi e a violinista Constanza Moreno, respectivamente, a viúva e a filha do homenageado. Na programação dos cursos, que são abertos aos estudantes de música e profissionais, duas novidades: Teatro Musical, que será ministrado pela norte-americana Jena Nelson, e Introdução à Regência Orquestral, ministrado pelo baiano José Maurício Valle Brandão.

O Festival acolherá alunos de várias regiões e do exterior, a exemplo dos estudantes da University of Central Oklahoma, que vêm pela primeira vez ao Brasil com o objetivo de participar das aulas e concertos que serão realizados em Campina Grande (no Teatro Municipal, no Mosteiro Santa Clara e na Primeira Igreja Batista) e nas cidades de Patos e Remígio. Na abertura do evento ocorrerá a estreia da Paixão Segundo Alcaçus, do compositor Danilo Guanais, obra para solistas, coro e orquestra,  que será interpretada pelos convidados do Festival e a Orquestra Sinfônica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a regência do maestro André Muniz Oliveira.

Novamente, graças ao trabalho conjunto de diversas instituições públicas e privadas, Campina Grande se transformará, no mês de julho, no centro musical da Paraíba e do Nordeste. Para saber mais sobre o Festival, que se insere no calendário de comemorações do sesquicentenário da Rainha da Borborema, acessem nossa página na internet (www.fimus.art.br) e nas redes sociais. Sintam-se, portanto, convidados e sejam todos bem-vindos ao V Festival Internacional de Música de Campina Grande.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

terça-feira, 11 de março de 2014

Benedicite

Benedicite, palavra latina que significa bendizer, é o título de um soneto de Olavo Bilac, publicado postumamente em 1919. O poema, formado por dois quartetos e dois tercetos, é um cântico de louvor que exalta os feitios humanos, bem como aquele que, “no dó profundo, descobriu a Esperança, a divina mentira, dando ao homem o dom de suportar o mundo!” Utilizei este poema para escrever uma obra para coro misto a quatro vozes, que foi dedicada ao Dr. Karl Nelson e ao University of Central Oklahoma Concert Chorale.

A peça dura, aproximadamente, quatro minutos e está dividida em seis partes. Os fragmentos utilizados na seção inicial foram extraídos de uma melodia medieval, Benedicamus Domino, inserida no Liber Usualis. A segunda seção é contrapontística, enquanto a terceira faz referência à música do Nordeste do Brasil. As melodias modais evocam os violeiros e a estrutura rítmica faz referência ao baião, uma das danças mais populares da região. A atmosfera lírica da quarta seção contribui para realçar o clímax do poema, e as progressões harmônicas da penúltima seção enfatizam o caráter introspectivo do texto. A obra conclui em clima de festa, combinando voz e percussão.

A composição deve ser interpretada a cappella. No entanto, entre os compassos 92 e 110 é possível adicionar percussão, incluindo triângulo, zabumba e ganzá, utilizados nas danças nordestinas. Neste caso, os instrumentos tocam colla voce (triângulo = alto, ganzá = soprano/tenor e zabumba = baixo). Outra opção é a percussão corporal. Minha sugestão é que os baixos batam palmas em forma de concha, os tenores estalem os dedos, os sopranos executem o ritmo com as mãos espalmadas, e os contraltos façam o mesmo sobre as pernas, as coxas. Para criar variedade, pode-se executar a primeira vez como está escrito. Em seguida, usar apenas instrumentos de percussão ou exclusivamente percussão corporal. Finalmente, vozes e instrumentos podem atuar conjuntamente, avivando o caráter rítmico e dançante da obra. Os movimentos corporais também podem ser coreografados. Os baixos batem palmas no peito, do lado do coração; os tenores balançam os braços; os contraltos dobram seus joelhos, inclinando ligeiramente o tronco para a frente; sopranos se movimentam como quem toca pratos sinfônicos.

A estreia da obra aconteceu há poucas semanas, com o University of Central Oklahoma Concert Chorale, durante uma visita que fiz àquela instituição. Além das palestras e do recital solo, tive a oportunidade de ensaiar e reger o coro, que trabalha sob a coordenação do maestro Karl Nelson. Esse mesmo grupo, formado por vinte e quatro cantores, vem para o Brasil com o objetivo de participar do quinto Festival Internacional de Música de Campina Grande, quando apresentará, novamente, esta obra em conjunto com o Coro de Câmara de Campina Grande.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)