segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Concerto para o advento

Era sábado, fim de tarde, quando os sinos começaram a badalar, anunciando a hora do ângelus. Vésper, a primeira estrela, já brilhava majestosa no céu escuro, enquanto dentro do Mosteiro, aquecido pelo calor das velas que reluziam nos castiçais, todos se acomodavam, silenciosamente, para aquele encontro musical/espiritual. Na parte mais alta do templo, sob o grande pórtico, o Coro Masculino da UFCG, acompanhado por um quarteto de metais, interpretava Haec est dies, de Jacob Handl, espalhando, no melhor estilo policoral, que “este é o dia que o Senhor fez. Regozijemo-nos, e alegremo-nos nele. Aleluia.”

Em seguida, o Coro em Canto cantou ao redor do templo, abraçando a plateia, fazendo com que todos se sentissem acolhidos naquele lugar simples, aconchegante, uterino, no qual a vida e os sons reverberavam harmonicamente. Os gestos de Lemuel Guerra, repletos de alegria exuberante, contagiavam o coro e os espectadores. Tudo era muito vívido e embalado pelos versos que nos falavam sobre a necessidade de manter acesa a esperança no coração e pela delicadeza das progressões harmônicas da Cantique de Jean Racine, de Gabriel Fauré.

Quando o Coro de Câmara da UFCG cantou a Ave Maria, de T. L. de Victoria, a mensagem do anjo Gabriel ecoou por toda a nave, exaltando a figura de Maria, especialmente no dia em que a Igreja celebrava a festa de Nossa Senhora das Graças. A imagem da Mãe de Deus estava ao lado do altar e no pingente que Tia Lúcia, devota da Medalha Milagrosa, trazia pendurado no pescoço. Lembrei-me da minha infância e de Dona Nuca, minha inesquecível avó, com suas novenas, terços e explicações sobre o simbolismo daquela imagem com a serpente, os raios, as doze estrelas, o coração cercado de espinhos e a cruz. Naquele momento, eu recebi a Sua benção.

De dentro da clausura, as irmãs proclamavam a Palavra, dizendo: “assim como o cervo anseia pelas águas, minha alma suspira por ti, ó Deus.” Estes versos sintetizavam a essência daquela vida reclusa, voltada para o Senhor. À medida que elas liam passagens bíblicas do Velho e do Novo Testamento, também cantavam as obras que escrevi para coro infantil/feminino, contrapondo fala e canto, luz e trevas, vida e morte. Para todas as religiosas que habitam no Mosteiro Santa Clara a noite era de festa, porque estávamos comemorando os sessenta anos de fundação da casa, porque era a nossa primeira apresentação pública, porque se tratava do início de mais um ano litúrgico. A voz feminina de Deus invadiu aquele espaço sagrado, envolvendo artistas e público, crentes de diferentes denominações, numa complexa e intensa trama polifônica, mística, divina, na qual os olhos, os ouvidos e os espíritos conheceram a Beleza que tudo transcende.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 7 de novembro de 2010

Teste e classificação vocal

O processo de seleção e classificação vocal basicamente envolve duas etapas. Na primeira, realizam-se tarefas que permitem verificar a percepção auditiva, nos seus aspectos rítmicos, melódicos e harmônicos. Na segunda, analisam-se diversos parâmetros, dentre os quais, a extensão, a tessitura e o timbre. Tais elementos devem ser observados em conjunto, pois concebê-los isoladamente não é um procedimento adequado. Utilizar a extensão como único critério de avaliação pode comprometer a análise vocal, porque as vozes tecnicamente limitadas poderão ser classificadas de forma equivocada em virtude das referências associadas a esta ou aquela categoria vocal. Além de observar os limites graves e agudos da voz, a classificação deve ser feita com base no timbre de cada cantor.

A mudança de registro também oferece elementos significativos e, nesse caso, a identificação exata das notas que estabelecem tais fronteiras pode servir como uma referência auxiliar, corroborando com outros parâmetros já analisados. Certamente este é um dos pontos polêmicos na área do canto, pois as opiniões são diversificadas quanto ao significado e quantidade dos registros vocais. Fundamentalmente, o regente deve perceber quando ocorre a transição do registro grave para o médio (primo passaggio) e do médio para o agudo (secondo passaggio), bem como a zona de passagem intermediária entre estes.

O regente, ao apreciar a voz de um cantor, precisa perceber toda a potencialidade latente e antecipar, de certo modo, o vir a ser desta voz, isto é, a forma como se apresentará após o desenvolvimento de um trabalho técnico eficaz. Somente a continuação do trabalho vocal permite confirmar ou não a classificação inicial e, por isso, nenhuma classificação vocal pode estabelecer um veredicto permanente, imutável, pois a voz, ao ser (re)educada, passa por muitas transformações, sendo essencial, nesse caso, não rotulá-la com uma nomenclatura específica, mas guiá-la ao longo de um estudo que favoreça o desenvolvimento máximo sem fadiga. É função do regente e/ou do professor de canto ou técnica vocal acompanhar esse processo, porque uma classificação errada, associada ao uso inadequado numa região que extrapola a tessitura mais cômoda e conveniente, pode estimular e favorecer o surgimento de problemas vocais.

É imprescindível, portanto, observar os procedimentos deste processo e avaliar precisamente a voz de cada cantor, tomando sempre como referência a singularidade que lhe é inerente. Além dos fatores técnicos, é indispensável acrescentar outras informações relativas ao perfil psicológico, social e cultural de cada indivíduo, procurando perceber como ele constrói os seus modelos e a imagem vocal que tem de si mesmo. Sugiro ler também o texto A prática coral LGBTQI+ para ampliar a discussão. O momento no qual o regente seleciona os seus cantores é uma das etapas mais importantes da prática coral, pois é nesta ocasião que é definido o DNA da sonoridade de um grupo.


Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)