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Continuando a história, logo após a
apresentação do seminário sobre Passio et
mors Domini nostri Jesu Christi secundum Lucam, de Penderecki, o professor me pediu uma cópia do meu roteiro, pois
gostaria de entender melhor os aspectos que mencionara durante a
explanação. Compartilhei o material, deixando um exemplar em meu acervo,
naquela pasta intitulada projetos inacabados.
Esqueci o tema temporariamente, enquanto
estudava Análise Schenkeriana e Literatura Coral Barroca concomitantemente, juntando os
conhecimentos de ambas para a produção de trabalhos envolvendo música e
retórica. A descoberta do tratado Musica
Poetica, de Dietrich Bartel, foi crucial para ampliar a minha compreensão
do pensamento composicional setecentista, sobretudo no que tange ao uso das
figuras retórico-musicais no contexto alemão. Por outro lado, à proporção que
eu me aprofundava na teoria analítica de Schenker, mais encontrava analogias
entre Ursatz e Dispositio, isto é, a estrutura fundamental da composição e a organização do discurso.
Ao completar todas as disciplinas e ter o
projeto final aprovado, dediquei-me ao Stabat
Mater, Op. 240, do compositor Amaral Vieira. Percebi vários traços
neobarrocos na obra deste paulista, fato que me levou a investigar a sua
narrativa poética e musical. Eu estava no meio da pesquisa, quando resolvi
escrever um texto abordando a Paixão polonesa.
Reli minhas anotações e voltei ao gráfico que apresentara nos primeiros
semestres na LSU. Passei semanas refletindo, afinal, o que representaria aquele
eixo tonal numa peça tão longa e complexa? Certo dia, no meio do banho, lavando
o cabelo, veio o insight: os pedais
que identificara eram a essência de um
coral de Bach. Nem terminei o banho, vesti-me e fui para a biblioteca, de onde
só retornei com a resposta em mãos. Analisei à exaustão vários corais do ícone
luterano até encontrar An Wasserflüssen
Babylon. A minha perspectiva, que pode ser
lida integralmente no artigo que publiquei na revista Per Musi (baixe aqui), revela uma relação hipotética entre a criação de Bach e a de
Penderecki. A comparação dos dois arcabouços, o literário e o sonoro, mostra como música e texto estão diretamente interligados e como tais elementos
sublinham características relevantes da paixão, morte e ressurreição de Cristo. Essa
especulação foi decisiva para a conclusão do meu argumento de tese. Anos
depois, Marcílio Onofre, que foi estudar com Penderecki lá na Polônia,
confirmou parte das minhas especulações com o seu mentor, fato que me deixou
ainda mais feliz.
Eu estou contando tudo isto, porque esta foi uma experiência marcante e porque Penderecki partiu recentemente. À distância e ao longo dos anos, aprendi a
contemplar as múltiplas dimensões do seu corpus,
tão inovador e vanguardista quanto político, humano e místico. Segue em paz,
mestre, que nós ficaremos por aqui, tentando compreender os mistérios e a
grandiosidade da vida e do teu legado.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
Entrei em contato com a produção do polonês
Krzysztof Penderecki nos Estados Unidos, na disciplina Literatura Coral do
século XX, durante o doutorado na Louisiana State University. Meu orientador,
dois meses antes do início das aulas que aconteceriam naquele verão, distribuiu
o material. Recebi várias obras, dentre as quais a Paixão Segundo São Lucas, do referido compositor. Os cursos funcionariam
em forma de seminários, que seriam apresentados pelos doutorandos. Cada
encontro duraria duas horas, ao longo das quais deveríamos discorrer sobre os
temas definidos previamente.
Devo confessar que a reação inicial foi entrar
em pânico. E com razão. Ora, além da complexidade do repertório que seria
analisado, ainda havia a questão linguística, afinal coordenar uma atividade no
âmbito da pós-graduação, expressando-se em outra língua que não era a nativa,
com um conteúdo novo e complexo é, no mínimo, bastante desafiador. Em vão,
tentei contornar a situação com o professor. Naquela ocasião, aprendi a mais
básica de todas as lições, que nunca esqueci e que, sempre que possível, ensino
aos meus alunos no primeiro dia de aula: se o problema é seu, é você quem deve solucioná-lo!
Saí da aula preocupado, desconfiando da minha capacidade de levar a cabo aquela
tarefa, pensando em tudo que já havia passado até chegar ali. Curti meu medo
por um certo tempo e gradualmente fui transformando o limite em possibilidade.
Iniciei a coleta bibliográfica, selecionei artigos,
livros e partituras em diferentes idiomas, ouvi CDs, enfim, esgotei todos os
recursos possíveis e imaginários numa época em que a internet não era essa
fonte inesgotável para a pesquisa, num tempo em que nós cotidianamente frequentávamos
as bibliotecas, recheadas de livros e mofo. No intervalo entre o Spring e o Summer, passei a morar no coração da LSU. Dia e noite, só pensava
em Penderecki, apaixonando-me por sua música, compreendendo a sua técnica e a
grandiosidade do seu trabalho. Estudei tudo o que era possível e nos três dias
de palestras, fiz o que se esperava e muito mais.
Mergulhei profundamente na Paixão (vídeo com partitura) e descobri aspectos estruturais
que, até então, não haviam sido mencionados em outros estudos. A análise
revelou, por exemplo, que os pedais estão conectados harmonicamente. Do ponto
de vista formal, há uma semelhança com a forma sonata. Minha descoberta revelava
a existência de elementos que eu não sabia ainda explicar claramente, mas que,
de fato, já conseguia identificar. Isso era uma grande novidade. E aí, quando
todos achavam que eu iria encerrar a palestra, dei o pulo do gato e sai com
essa pérola, para a surpresa de muitos, ressalte-se. Foi assim meu encontro com
esse ícone da música do Leste Europeu e o meu début no doutoramento. Mas quem disse que esta história termina aqui?
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
Quando os meus filhos iniciaram a vida escolar, frequentemente eu era desafiado pela equipe pedagógica do educandário onde eles
estudavam a escrever músicas que abordassem os tópicos explorados em sala de
aula. Na educação infantil, os temas eram variados e incluíam cores, formas,
noções de quantidade, volume e peso, texturas, o corpo humano. Por esta razão,
comecei a escrever canções para ilustrar aqueles encontros.
A primeira peça que escrevi chama-se Movimentando. A ideia surgiu por conta de uma série de atividades
exploratórias que as crianças estavam desenvolvendo, tanto do ponto de vista
prático, nos momentos de recreação, quanto na perspectiva teórica, na
realização das tarefas de casa. Meu propósito era produzir algo dinâmico, que
estimulasse a percepção corporal, a associação entre som e movimento. Além
disso, gostaria também de acrescentar um conteúdo específico, que
pudesse ser aproveitado exclusivamente nas aulas de música.
Como em todo o processo criativo, estipulei parâmetros e iniciei
o projeto. Defini que a melodia teria o âmbito de uma oitava e que seria
construída com a escala pentatônica, permitindo, deste modo, o trabalho em
conjunto com a manossolfa. O texto foi concebido com palavras simples, curtas, de
fácil entendimento, visando a garotada com três ou quatro anos. Busquei
vocábulos que pudessem sugerir movimentos físicos como, por exemplo, o ato de esticar,
pular, mexer, andar, marchar e dançar. No refrão, usei os advérbios cá e lá para reforçar a dicotomia próximo-distante, pois estão localizados nas fronteiras da região
grave-agudo da melodia. Enquanto a primeira parte é lenta e calma, associada ao
alongamento que geralmente precede os exercícios físicos, a segunda é mais
rápida, viva, agitada, dançante.
Compus essa obra em casa, na Rua Cravos, em Teresina, no
quarto de estudos, contemplando a beleza do jardim. Ia compondo e cantando,
enquanto meus pequenos, ao meu lado, cantarolavam alguns trechos do que
acabavam de ouvir, fato que me estimulava a continuar com a empreitada. Logo
que finalizei a composição, começamos a ensaiá-la e cantá-la em conjunto,
naquele mesmo recinto. Momento de grande alegria, ali, imediatamente, eu
percebi que o caminho era aquele e que o material seria bem aceito pela
gurizada. No dia seguinte, animado e já pensando em outros projetos, repassei o
material para os professores de educação musical e também apresentei-o na sala
de aula onde estavam os meus rebentos (partitura com cifra em Dó, Fá e vídeo). A
festa foi grande e acompanhada por violão e coreografia, elementos que ajudaram
na aprendizagem e expansão do repertório. Desde então, esta canção tem sido cantada Brasil e mundo afora,
por crianças, jovens e adultos de diferentes idades e contextos, posto que a
alegria que a música promove não tem limites, desconhece barreiras, é contagiante,
é a vida movimentando-se.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
O processo de elaboração de um arranjo começa com a escolha de uma canção. A seleção da peça a ser trabalhada carece ser criteriosa, abarcando a análise dos aspectos textuais e musicais e o contexto da sua criação, circulação e recepção. Ouvir várias gravações ajuda a definir estratégias na condução da (re) harmonização e da (re) leitura do texto poético-musical. É crucial saber para quem se escreve, razão pela qual é necessário estabelecer as extensões vocais dos naipes, os limites agudos e graves, a quantidade de vozes, onde haverá divisi, mudanças de tom e modo, bem como o nível de complexidade rítmica, melódica e harmônica.
O planejamento composicional precisa, nessa perspectiva, estipular o quão próximo ou distante o novo objeto estará da versão original, a definição da forma, quantas seções terá, sua duração integral, se é a capela ou com acompanhamento, se há espaço para solistas ou quaisquer outras particularidades. O uso de variadas texturas criará contrastes, trará equilíbrio e também dinamizará a interpretação, exigindo do coral múltiplas sonoridades. O tratamento da dissonância e da consonância e a alternância entre passagens homorrítmicas e imitativas poderão sublinhar momentos importantes do poema. O contraste do uníssono com a polifonia, alinhado aos elementos expressivos, incluindo as variações de dinâmica, articulação e tempo, enriquecerá o projeto. Atenção especial deve ser dada ao uso das onomatopeias, evitando excessos e clichês. O mesmo vale para a prosódia.
Sempre que possível, é preciso conceber o acompanhamento como um elemento estrutural e não apenas um suporte que ajuda o grupo a manter a afinação, do começo ao fim da obra. O diálogo do coro com os instrumentos é parte essencial da construção. Por isso, quando for o caso, uma opção é inserir prelúdios, interlúdios e poslúdios instrumentais que conectem subdivisões e resumam a narrativa.
O desafio do arranjador é, portanto, preservar os parâmetros essenciais do modelo e, ao mesmo tempo, distanciar-se dele, introduzindo novos elementos sobre algo já conhecido, desafiando o intérprete-ouvinte a criar em sua mente uma conexão entre dois produtos similares porém diferentes. Esta é uma tarefa que exige criatividade, imaginação e técnica, logo não tem como ser feita às pressas e de qualquer maneira. Ela exige aproximação e distanciamento, revisão, criticidade. O balanço desses três pilares validará a qualidade do trabalho, independentemente se a proposta é para ensemble amador ou profissional; a duas ou mais vozes, sejam elas infantis, jovens ou adultas; a capela ou acompanhadas, seja por um trio de forró, uma banda de rock ou uma orquestra sinfônica. Desse modo, parafraseando Santo Agostinho em sua explanação sobre o belo, acredito que quem escreve um arranjo deve ter o compromisso de encontrar caminhos que nos façam enxergar a beleza antiga e familiarizada de uma nova forma.
Cussaruim em dois tempos (Manuel Bandeira - José Vieira
Brandão) é uma composição para coro misto a seis vozes. A extensão vocal é a seguinte: Soprano, Ré3 - Lá4; Contralto, Sib2 - Dó#4; Tenor, Ré2
- Sol3; e Baixo, Sol1
- Mi3. Para a execução desta peça,
são indicados outros recursos sonoros, a exemplo da realização de trechos
recitados, com voz falada.
Muito
embora esteja organizada em blocos, Berimbau
e Boca de Forno se complementam pelo
sentido notadamente dançante que possuem, típico das manifestações
musicais ligadas à tradição oral brasileira. As duas partes estão escritas em
notação tradicional e, em ambas, a estrutura métrica é grafada nos compassos
binário, ternário e quaternário simples, totalizando oitenta e três compassos. Berimbau é uma forma tripartida e tem
melodias e harmonias construídas em Dó lídio, mixolídio e lídio/mixolídio. Boca de Forno também está organizada em
três seções e apresenta diferentes centros tonais.
A
preparação de Cussaruim poderá
envolver variadas atividades, incluindo a leitura e a compreensão textual, uma
breve passagem sobre a vida e a obra do poeta e do compositor, assim como
leituras sobre o maracatu. As informações apresentadas no
prefácio da partitura (baixe aqui) publicada pela FUNARTE, em 1982, são relevantes, pois
clarificam o pensamento de Vieira Brandão, que “se ateve na criação de dois
momentos musicais, nos quais a imagem folclórica de cussaruim se apresenta
envolta em ambientes rítmicos e melódicos contrastantes.” Ao detalhar sua
criação, complementa: “no primeiro quadro, incluso na lenda do boto amazônico,
utilizando agregações sonoras num jogo rítmico harmônico alternado com frases
declamadas. No segundo quadro, como personagem do maracatu nordestino, após o
diálogo inicial em uníssono, predomina um clima seresteiro onde as melodias se
sucedem e se entrelaçam no plano harmônico do coro misto. A coda reproduz o
diálogo do início que conduz ao clímax final.”
No
trabalho vocal, o emprego de exercícios de articulação pode
ajudar na emissão das palavras. Os vocalizes podem tomar como base as
constâncias rítmicas e fonéticas da partitura. Além disso, o treinamento deve
incluir a voz falada, em busca da projeção numa região
adequada, com finalidades artísticas, evitando o esforço desnecessário. Sob a
perspectiva melódica, o regente pode criar solfejos com as configurações modais
já citadas, bem como acordes quartais. Além dos aspectos descritos, caso haja
necessidade, é possível pensar em algum tipo de trabalho corporal/cênico que
permita uma encenação do texto em conformidade com as seções da música. Muito
embora apresente alguns pequenos desafios para coros menos familiarizados com esse tipo de linguagem, a peça é acessível, alegre e divertida. Recursos plásticos e cênicos poderão expandir a
imaginação e a motivação dos cantores e da plateia, dinamizando, deste modo, o
processo interpretativo, expandindo a experiência estética.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
Nabor Nunes Filho (Itabaiana-PB,
1944 - Americana-SP, 2013) iniciou sua vida musical durante a infância, tocando na
Igreja Batista e na banda de sua cidade natal, lugar onde concluiu o
curso primário. Após essa fase, mudou-se para a capital Pernambucana a fim de
cursar o ginásio e o científico, no Colégio Americano Batista de Recife. Na
Veneza brasileira, graduou-se em Teologia pelo Seminário Batista Teológico do
Norte (SBTN), instituição na qual aprofundou seus estudos na arte dos sons e recebeu o título de Bacharel em Música Sacra. Posteriormente, fez Composição na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
tendo estudado com Almeida Prado e Damiano Cozzella, e obteve os títulos de
mestre e doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UMP). Em
seu histórico profissional, encontramos registros da sua atuação como pastor e docente em diferentes instituições e localidades.
É certo que o canto coral foi a grande paixão de Nabor Nunes, razão pela qual, na pesquisa que realizamos, nós identificamos mais de 30 motetos, salmos e cantatas para vozes afins e mistas, a capela e com acompanhamentos variados (veja aqui). Contudo, ele escreveu arranjos e composições originais, peças instrumentais e vocais,
para solistas e diferentes formações.
O Pai Nosso Sertanejo é provavelmente um dos
maiores sucessos de Nabor Nunes. Publicado
pela primeira vez em 1974, seu texto faz menção à seca no Nordeste. Outros nomes de referência, dentre os quais Simei Monteiro, Jaci Maraschin, Sérgio Marcos,
Tito Lopes, Dércio Laurete e Nelson Mathias, também exploram temáticas
similares, demonstrando que uma nova vertente na música protestante nacional estava nascendo, na transição para a década de setenta. Essa opção pelo
vernáculo, o engajamento com as questões econômicas, políticas e sociais, assim
como o uso de elementos poéticos e musicais advindos da nossa tradição oral são reflexos, de certo modo, das diretrizes do Concílio Vaticano II e da Teologia da Libertação no seio do protestantismo em nosso país e, mais diretamente, no corpus do itabaianense.
A
música para coro de Nabor Nunes é vocalmente cômoda, sem grandes complexidades
rítmicas e harmônicas, sendo viável para conjuntos religiosos que desejam, por
exemplo, cantar repertório em língua portuguesa no serviço litúrgico. Em muitas
partituras, as cifras, acima da voz do soprano, sugerem a inserção de
instrumentos harmônicos, em favor de uma liturgia mais funcional e em sintonia
com as necessidades e possibilidades da congregação. O legado do compositor
paraibano, no entanto, não se restringe exclusivamente a esse contexto.
Suas peças, muito embora predominantemente religiosas, ocupam um espaço relevante
na literatura coral sacra brasileira da segunda metade do século vinte e ainda são desconhecidas por grande parte dos nossos pares. Por isso, elas precisam e devem ser editadas,
publicadas, analisadas, difundidas e interpretadas criteriosamente. Esse
trabalho está apenas começando.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)