terça-feira, 31 de março de 2020

Segue em paz, mestre!

Continuando a história, logo após a apresentação do seminário sobre Passio et mors Domini nostri Jesu Christi secundum Lucam, de Penderecki, o professor me pediu uma cópia do meu roteiro, pois gostaria de entender melhor os aspectos que mencionara durante a explanação. Compartilhei o material, deixando um exemplar em meu acervo, naquela pasta intitulada projetos inacabados.

Esqueci o tema temporariamente, enquanto estudava Análise Schenkeriana e Literatura Coral Barroca concomitantemente, juntando os conhecimentos de ambas para a produção de trabalhos envolvendo música e retórica. A descoberta do tratado Musica Poetica, de Dietrich Bartel, foi crucial para ampliar a minha compreensão do pensamento composicional setecentista, sobretudo no que tange ao uso das figuras retórico-musicais no contexto alemão. Por outro lado, à proporção que eu me aprofundava na teoria analítica de Schenker, mais encontrava analogias entre Ursatz e Dispositio, isto é, a estrutura fundamental da composição e a organização do discurso.

Ao completar todas as disciplinas e ter o projeto final aprovado, dediquei-me ao Stabat Mater, Op. 240, do compositor Amaral Vieira. Percebi vários traços neobarrocos na obra deste paulista, fato que me levou a investigar a sua narrativa poética e musical. Eu estava no meio da pesquisa, quando resolvi escrever um texto abordando a Paixão polonesa. Reli minhas anotações e voltei ao gráfico que apresentara nos primeiros semestres na LSU. Passei semanas refletindo, afinal, o que representaria aquele eixo tonal numa peça tão longa e complexa? Certo dia, no meio do banho, lavando o cabelo, veio o insight: os pedais que identificara eram a essência de um coral de Bach. Nem terminei o banho, vesti-me e fui para a biblioteca, de onde só retornei com a resposta em mãos. Analisei à exaustão vários corais do ícone luterano até encontrar An Wasserflüssen Babylon. A minha perspectiva, que pode ser lida integralmente no artigo que publiquei na revista Per Musi (baixe aqui), revela uma relação hipotética entre a criação de Bach e a de Penderecki. A comparação dos dois arcabouços, o literário e o sonoro, mostra como música e texto estão diretamente interligados e como tais elementos sublinham características relevantes da paixão, morte e ressurreição de Cristo. Essa especulação foi decisiva para a conclusão do meu argumento de tese. Anos depois, Marcílio Onofre, que foi estudar com Penderecki lá na Polônia, confirmou parte das minhas especulações com o seu mentor, fato que me deixou ainda mais feliz.

Eu estou contando tudo isto, porque esta foi uma experiência marcante e porque Penderecki partiu recentemente. À distância e ao longo dos anos, aprendi a contemplar as múltiplas dimensões do seu corpus, tão inovador e vanguardista quanto político, humano e místico. Segue em paz, mestre, que nós ficaremos por aqui, tentando compreender os mistérios e a grandiosidade da vida e do teu legado.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

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