sábado, 3 de setembro de 2016

Cheiro da Terra

Estive em Aracaju-SE, há poucos dias, participando do I Simpósio de Música Nordestina, organizado pela Universidade Federal de Sergipe, Fundação Cultural de Aracaju e Prefeitura Municipal de Aracaju. O convite foi feito pelo coordenador do evento, Antônio Sérgio Telles das Chagas, campinense que reside naquela capital há mais de três décadas e que também foi meu regente no Coral Cecília Meireles (FACMADRIGAL), nos anos oitenta. Participaram do encontro vários músicos e pesquisadores, oriundos de diferentes localidades, dentre os quais os amigos Poty Fontenelle (Fortaleza-CE) e José Renato Accioly (Recife-PE). Ao longo de três dias, discutimos as várias realidades do Nordeste.

Na mesa de abertura, o foco foi o ensino de música no âmbito universitário. Falei sobre o que temos desenvolvido na Universidade Federal de Campina Grande, enquanto o professor Eduardo Conde Garcia Júnior fez o mesmo no contexto da Universidade Federal de Sergipe. À tarde, o tema foi a música de tradição oral. José Renato Accioly falou sobre o Movimento Armorial, enfatizando a Grande Missa Nordestina, do compositor Clóvis Pereira, obra para solistas, coro e orquestra. Odílio Saminez abordou a música dos Lambe Sujo, da cidade de Laranjeiras. A professora Aglaé D’Ávila Fontes, presidente da FUNCAJU, octogenária ativista cultural que esbanja vitalidade, energia e histórias sobre a cultura popular daquele estado, relatou suas experiências pioneiras no campo da educação musical. Encerramos o dia dançando Samba de Côco com um grupo quilombola.

Silvério Pessoa discutiu o hibridismo em sua produção. Falou do frevo, do maracatu, da infância em Carpina, destacando, com grande emoção e afeto, o primeiro contato que teve com a música de Jackson do Pandeiro e como isso foi determinante para a definição do seu estilo. Profundo conhecedor da obra deste alagoa-grandense, ele tem dedicado parte da sua produção fonográfica para a regravação das obras do Rei do Ritmo, como assim o nomeou Fernando Moura. Poty Fontenelle, que foi arranjador da banda Mastruz Com Leite durante vários anos, discutiu a música numa perspectiva comercial, desmistificando muitos aspectos deste fazer/saber, aproximando o universo acadêmico do mercado de trabalho. Lucas Campelo encerrou as conferências descrevendo a trajetória de Dominguinhos, sua formação e obra.

Neste encontro, o  debate foi acirrado e pautado em cima da dicotomia limite/possibilidade, tradição/modernidade, popular/erudito, licenciatura/bacharelado, a missão poética/profética do educador/artista. Estou certo que todos expandiram seus universos sonoros, ampliaram as formas de percepção de si e dos outros, compreenderam que é preciso respeitar as diferenças e as peculiaridades das práticas musicais da região. Na despedida, guardei na mala e na memória os sabores e o Cheiro da Terra, uma canção de Chiko Queiroga e Antônio Rogério que ressalta as belezas de Aracaju, enquanto fechava a janela do quarto, no hotel defronte à praia de Atalaia, mirando as ondas do mar.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 13 de agosto de 2016

Pensar, agir e cantar como solista

Quando a aprendizagem do repertório coral ocorre apenas por meio da memorização, quase sempre é necessário repassar muitas vezes um mesmo trecho, fato que pode tornar os ensaios morosos, comprometendo o cronograma de atividades do grupo e a interpretação de outras obras. Nesse contexto, a inclusão de uma literatura mais complexa, elaborada e variada, seja sob o ponto de vista melódico, harmônico, rítmico ou textural, é quase sempre descartada, pois não há espaço, e em muitos casos interesse, para tal tipo de abordagem.

A situação é mais ou menos contornada se o conjunto tem integrantes que, muito embora não saibam ler partitura, têm boa memória musical. Em certa medida, eles são a referência para aqueles mais inseguros e assumem o papel de arrimos do naipe. O que parece ser uma solução, a priori, pode, na verdade, ser um problema, sobretudo quando se estabelece uma relação de dependência, viciosa, e o coro não consegue cantar sem tais líderes. Esse quadro se agrava quando esse cantor, consciente da responsabilidade que tem dentro do grupo, se considera insubstituível e passa a agir de forma inconveniente e perigosa, tratando os demais colegas e o regente como reféns dos seus caprichos, vontades e opiniões.

Algumas atitudes contribuem para ratificar esse status. Às vezes, o ensaio não começa enquanto esses indivíduos não chegam. Em outras ocasiões, as apresentações são canceladas porque tais coralistas não podem participar. Quando esse tipo de liderança involuntária ganha notoriedade no âmbito de um grupo e conta com a aquiescência dos seus integrantes, recebendo elogios excessivos e/ou tratamento diferenciado, os prejuízos se revelam a curto, médio e longo prazo. Tal conjuntura fortalece o vedetismo daqueles que se acham imprescindíveis, potencializam reações passionais, esvaziam o sentido sócio-político-cultural-educativo da prática coral.

Memória, ouvido e voz são, indiscutivelmente, atributos necessários para todo e qualquer intérprete. No entanto, como regentes, precisamos trabalhar objetivamente o solfejo e a técnica do canto, explorando o potencial de cada um dos membros do coro, indistintamente, seja num grupo religioso, de empresa ou universitário, de vozes afins ou mistas, adulto ou infanto-juvenil. À semelhança do que ocorre com o entrelaçamento dos sujeitos e contrassujeitos de uma composição polifônica, nossa ação deve favorecer a autonomia, estimular as relações interdependentes, tanto no plano afetivo quanto do saber/fazer musical, evitando, sob todas as perspectivas, os vínculos que criam dependência, relações doentias, o estrelato. Fomentar uma nova forma de atuação, criando mecanismos que assegurem a autossuficiência dos cantores, sem perder de vista, todavia, a coletividade que a prática coral exige, parece ser um caminho viável. Em outros termos, queremos que os nossos coralistas pensem, ajam e cantem como solistas, mas sempre em uníssono.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sexta-feira, 22 de julho de 2016

De mãos dadas, ao redor do Teatro

Dirigir artisticamente um evento é uma tarefa complexa. Por mais espetaculares que sejam as nossas ideias, elas sempre esbarram numa questão fundamental: o limite orçamentário. Tal situação se agrava em época de crise econômica, quando as restrições são mais evidentes, definindo, assim, as fronteiras das nossas escolhas, a liberdade criativa. Quando idealizamos um Festival, além do aspecto financeiro, nós também pensamos na sua dimensão sócio-educativa-política, posto que a música é produto da cultura, de um determinado povo-tempo-lugar, da sua historicidade. É por meio do repertório, por exemplo, que expandimos a percepção do mundo e do outro, que compreendemos generalidades e idiossincrasias, aquilo que nos aproxima e nos distancia.

Nesta edição do FIMUS, celebramos o centenário do violonista Dilermando Reis. Ouvimos o panelaço do oratório profano Stella Splendens, de Eli-Eri Moura, que incomodou parte da plateia, que optou por sair do Teatro por considerar a obra “excessivamente provocativa”. Cantamos a Misa Criolla, de Ariel Ramirez, acompanhados por instrumentos típicos da região, numa referência à resistência dos povos da América Latina na luta contra as ditaduras. Homenageamos Antônio José Madureira, fundador do Quinteto Armorial e pioneiro no ensino de música no âmbito da UFPB, Campus II, nos anos setenta. Optamos por uma programação centrada majoritariamente em obras e compositores nacionais, incluindo Osvaldo Lacerda, Camargo Guarnieri, Ernst Mahle, Paulo Rios Filho, Liduino Pitombeira, Dimitri Cervo, Vilani-Côrtes, Guerra-Peixe, Villa-Lobos e o jovem Rafael Meira.

Colocamos a par e passo o permanente e o transitório, o novo e o velho, o tradicional e o moderno, a identidade e o pertencimento. Evidenciamos, em outros termos e como diria Bakhtin, o problema da relação recíproca entre a infraestrutura e as superestruturas, isto é, como a realidade determina o signo e como o signo reflete e refrata a realidade em transformação, sobretudo tendo em vista a ubiquidade social da palavra/música (grifo nosso).

O encontro entre o iniciante e o experiente, o micro e o macro, o som e o ruído, nos fez superar limites, conectar extremos: Júlia Abdalla e Fredi Gerling; o Municipal e a Capela de São Bento, na zona rural de Remígio; o Concerto para dois trompetes em Ré Maior, de Manfredini, e Plangeon, para flauta solo, de Januibe Tejera, magistralmente interpretada por Lucas Robatto. O trabalho de Phillipe Xadai, que assinou o projeto gráfico deste ano, e a animação de Kadu Camilo também estão vinculados. À rigidez das retas do tetragrama contrapõe-se um pontilhismo liquefeito e indefinido, verde e amarelo, misturado, ora em tons pasteis, por vezes em tons vibrantes, tal como o som das marchinhas carnavalescas executadas pela orquestra, na noite do encerramento do Festival, e que nos fizeram dançar de mãos dadas, ao redor do Teatro, enquanto renovávamos as utopias individuais e coletivas.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 11 de junho de 2016

Forró-Jazz-Sinfônico

Uma das novidades d’O Maior São João do Mundo este ano foi o Forró-Jazz-Sinfônico, uma iniciativa do Festival Internacional de Música de Campina Grande (FIMUS) em parceria com o Projeto Notas de Passagem e a Prefeitura Municipal.

A ideia surgiu com a possibilidade da inclusão da Rainha da Borborema no roteiro da Luther College Jazz Orchestra (LCJO), que estaria em turnê visitando estados do Sul e do Nordeste do Brasil. Quando Eduardo Lakschevitz, coordenador do Notas de Passagem, lançou a proposta, prontamente a abraçamos, tendo em vista o seu potencial sócio-educativo-cultural. A coordenação geral do São João acatou a ideia, sugerindo a inclusão da Filarmônica Estrelas da Serra, grupo ligado à entidade Vamos Fazer Arte, da cidade de Croatá-CE, e apoiada pela Expresso Guanabara. Ampliamos o leque e inserimos a FUPOP Orquestra, da Fundação Universitária de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FURNE), bem como o acordeonista Marcos Farias, filho da cantora Marinês.

A Filarmônica Estrelas da Serra começou a noite em grande estilo, interpretando obras clássicas de Zé Ramalho e Luiz Gonzaga. A alegria do regente Hélio Júnior Bezerra contagiou a Filarmônica e o público presente. Logo após os cearenses, apresentou-se a Luther College Jazz Orchestra, formado por alunos da Luther College, do estado de Iowa, nos Estados Unidos da América. A big band, conduzida pelo compositor e regente Tony Guzmán, mostrou um repertório eclético e bastante complexo, tocando jazz e blues, assim como obras de referência da nossa música, incluindo bossa nova, frevo, samba, chorinho e baião. Duas interpretações foram marcantes na performance dos norte-americanos: Aquarela do Brasil e Asa Branca. A plateia encantou-se com o alto nível e a inserção da música brasileira no repertório do grupo estrangeiro, reconhecendo o trabalho dos músicos de forma calorosa, razão pela qual receberam aplausos várias vezes durante a execução das obras. Os integrantes da LCJO participaram de um intercâmbio com os alunos do curso de Música da UFCG. A FUPOP Orquestra levou ao Parque do Povo o trabalho que desenvolveu durante as comemorações do sesquicentenário da nossa cidade, com músicas sobre a Rainha da Borborema, merecendo destaque Kátia Virgínia, que também prestou homenagem ao seu esposo, pianista Gabmar Cavalcanti, falecido recentemente. O acordeão de Marcos Farias trouxe à tona a presença forte e singular de Marinês, que por tantas vezes cantou naquela praça.

O Forró-Jazz-Sinfônico, à semelhança do FIMUS, nasceu para ter vida longa, ser um evento de sucesso, uma referência na região. Nossa meta é estreitar as parcerias, fazendo com que Campina Grande seja conhecida não apenas por realizar O Maior São João do Mundo, mas, sobretudo, pela música de alta qualidade que produz, tanto a advinda das tradições populares e das salas de concerto, quanto aquela interpretada por músicos locais e internacionais.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Mark Hayes em Campina Grande

Foi com grande alegria que recebemos, entre os dias 11 e 16 de abril, Mark Hayes, pianista, compositor e regente norte-americano. Durante uma semana, ele ministrou aulas de composição e arranjo e também ensaiou e regeu nossos coros, interagindo com alunos e pessoas da região.

Além de abordar os aspectos diretamente ligados à prática composicional, Mark Hayes também falou da sua trajetória, destacando como iniciou a carreira como arranjador e compositor. Pianista por formação, ele descobriu, no tempo em que estava na universidade, que poderia escrever arranjos e, mais interessante ainda, ganhar dinheiro com esta atividade. Contou-nos que este foi um processo lento e que, gradualmente, ao longo dos anos, estabeleceu-se no mercado musical estadunidense, compondo e publicando obras instrumentais e vocais, sacra e secular, para diferentes formações e com variados níveis de dificuldade. A grande maioria das suas obras são para coro misto e de vozes afins, algumas a cappella, outras com acompanhamento, que vão do piano até grandes massas orquestrais, como é o caso do seu Requiem e do Te Deum, cujas partituras autografadas ganhei na perspectiva de futuramente incluí-las no repertório dos nossos coros. As palestras de Mark Hayes foram inspiradoras, motivando os alunos, que dialogaram com o compositor, perguntando-lhe questões práticas sobre o mercado, o processo de edição de partituras, a produção de CDs na América do Norte. Nosso convidado descreveu com propriedade os limites e possibilidades da sua opção profissional e do trabalho autônomo que desenvolve há mais de três décadas, revelando, de modo pragmático, segredos e atalhos da sua caminhada.

Seguindo as aulas e palestras, Mark Hayes ensaiou o Credo, de sua autoria, com o Madrigal Ars Femina, grupo coordenado pela professora Malu Mestrinho. Já com o Coro de Câmara de Campina Grande, ensaiou Grace, obra baseada no conhecido hino Amazing Grace, tema bastante recorrente em suas composições. Os dois coros, ao final, interpretaram conjuntamente Swingin’ With the Saints, um dos seus arranjos mais populares. Na noite de encerramento das atividades, fomos brindados com um concerto no qual ele apresentou várias peças solo e com acompanhamento, destacando-se a versão jazz-bossa nova da tradicional canção de John Newton. A interação com os músicos e a plateia marcaram a interpretação desta e de outras melodias conhecidas.

A vinda de Mark Hayes para Campina Grande estava prevista para o Festival Internacional de Música de 2015. Por questões superiores, o projeto não se concretizou naquela data, tendo sido realizado somente agora. Graças à ação conjunta da Primeira Igreja Batista, da Universidade Estadual da Paraíba e da Universidade Federal de Campina Grande, realizamos mais esta atividade, colocando a Rainha da Borborema na rota de passagem dos grande mestres da música.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 23 de janeiro de 2016

Como selecionar repertório

Quando estou selecionando repertório para meus grupos, as variáveis são tantas que costumo trabalhar muitos dias nesta tarefa. Geralmente, organizo as obras que pretendo interpretar a curto, médio e longo prazo em três categorias: na primeira estão as composições mais simples, que podem ser incorporadas ao dia-a-dia do conjunto rapidamente; na segunda, aquelas que exigem elevado nível técnico e cuja preparação demanda mais tempo; na terceira, as masterpieces, obras que necessitam de muitos recursos humanos e financeiros para serem executadas e que não dependem exclusivamente da minha iniciativa. Além desses critérios, analiso o potencial das peças e vejo se elas contemplam múltiplas dimensões do fazer musical.

Prefiro trabalhar com literatura original, escrita por diferentes autores e em períodos distintos, seja para coro, banda ou orquestra. Eventualmente, para variar e de acordo com as necessidades, insiro arranjos, versões e adaptações. Faço isso porque, no caso específico do canto coral, percebo que muitos colegas têm priorizado um repertório de qualidade duvidosa, com forte apelo midiático, deixando de lado obras de referência, alegando os mais variados argumentos, muitos dos quais infundados.

Combino o velho e o novo, o local e o regional, os compositores consagrados e aqueles em ascensão, cuja produção, além de tecnicamente adequada e acessível, seja igualmente expressiva e bela. Às vezes, exploro um autor, uma época, um estilo, um tema, o repertório a cappella; outras, música com solistas, coro e acompanhamento instrumental. Sempre busco a variedade de andamentos, tons, articulações, dinâmicas, textos, texturas e caráteres. É preciso paciência para garimpar e organizar esse quebra-cabeças, pois quando o repertório não é selecionado criteriosamente é possível que aja desânimo, que os ensaios se tornem morosos, que o desgaste entre regente e músicos se acentue, que a experiência musical não seja afetiva, lúdica. A plateia também reage diante de escolhas inconsistentes, equivocadas, bocejando, mexendo-se nas poltronas, desejando, ansiosamente, o fim do concerto.

Selecionar o repertório da temporada é uma ação que requer calma, posto que a pressa é inimiga da perfeição, e muita racionalidade, visto que a emoção não é sábia conselheira. Antes de tomar uma decisão, esboço várias possibilidades, equilibro os princípios que norteiam a minha práxis artística e pedagógica com as necessidades e as expectativas daqueles com os quais irei conviver e trabalhar. Tento resistir, na medida do possível, às pressões extrínsecas, muitas das quais podem ser motivadas pelo modismo, pelas imposições do mercado, pelas exigências dos chefes imediatos, pelos caprichos dos mecenas, pela opinião dos impertinentes. Todo ano, nessa época, meu desafio – e o de muitos regentes – é sempre o mesmo: organizar o repertório sem perder de vista o ideal, sem abrir mão da excelência, sem excluir a possibilidade de mudança ao longo do percurso.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)