terça-feira, 6 de novembro de 2018

O Canto Coral na Paraíba: Eli-Eri Moura

Eli-Eri Moura, natural de Campina Grande, é pesquisador, professor, pianista, regente e compositor. Durante muitos anos, inicialmente como funcionário e posteriormente como docente da UFPB, em João Pessoa, atuou como diretor do Grupo Ânima e do Coral Universitário da Paraíba “Gazzi de Sá”, exercendo papel relevante no estado.

Com o Ânima, dedicou-se à música antiga, à montagem de renascenças, que eram interpretadas por vozes e um consorte de flautas e percussão. Nos programas, destaque para a música de tradição ibérica, os cancioneiros de Upsala e Palacio. Com esse ensemble, apresentou espetáculos originais, que incluíam encenação. Os integrantes do conjunto eram escolhidos criteriosamente, tinham larga experiência e, em alguns casos, estavam vinculados ao movimento teatral, a exemplo de Tião Braga, Elton Veloso e Melânia Silveira, que também participaram de vários espetáculos produzidos por ele e W. J. Solha. O Coral Universitário da Paraíba, por sua vez, cantava o repertório tradicional, música popular brasileira, além de trabalhos inéditos. Com liderança, carisma e muita competência, Eli-Eri atraiu a comunidade acadêmica, expandiu as atividades do Gazzi de Sá, que, por conta do grande número de interessados, foi dividido em CORALUP I e II. Como regente assistente desses grupos, e sob a orientação do maestro, participei de vários eventos artísticos-culturais no estado e região, encontro e festivais de coros, no Brasil e no exterior, dentre os quais o IX Encuentro Coral de Ateneo del IES, na Argentina, cuja aventura narro na crônica Mas o meu pires é de porcelana.

Eli-Eri Moura é um compositor de técnica apurada e gosto refinado, que se identifica com o canto, razão pela qual sua escrita vocal é intensa, generosa, boa de se interpretar. Muitas das suas peças são leves, a exemplo do ciclo Respingos, baseado numa seleção de poemas do irreverente Paulo Leminsky. Outras são mais dramáticas, como o Réquiem Contestado Os Indispensáveis, para solistas, coro misto, banda de rock e orquestra sinfônica. Réquiem para um trombone, escrito em homenagem a Radegundis Feitosa, é lírico, dolente, repleto de poesia. Há também aquelas mais engajadas, com forte caráter político, como o Credo Explícito e a Missa Breve, esta última para tenor, coro e quarteto de madeiras. O Salmo 150, assinado sob o pseudônimo de Paulo Vinicius, e os arranjos de Sete cantigas para voar e Cio da Terra são construções delicadas e preciosas.

Minha conexão com Eli-Eri Moura vem de longas datas, tanto na sala de aula/ensaio quanto no palco, na realização de vários projetos. Ao longo desta convivência, aprendi e cresci muito. Atualmente, ele dirige o Iamaká, uma camerata formada por cantores e instrumentistas que tem se dedicado à interpretação da música seiscentista e contemporânea. Suas obras ocupam lugar de destaque na literatura coral brasileira e estão, indiscutivelmente, entre as minhas preferidas.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 21 de outubro de 2018

Campina FM

Hoje a Campina Grande FM completa quarenta anos. Pioneira na Paraíba, e segunda no Nordeste, a rádio inaugurou um novo tempo na comunicação no estado, oferecendo à população da Rainha da Borborema e circunvizinhança uma vasta grade com música, jornalismo e temas especiais. Lembro que a primeira transmissão foi precedida por muito frenesi e expectativa.

Nomes importantes do rádio-jornalismo passaram por essa estação. Certamente, seu fundador e diretor, Hilton Motta, foi uma das vozes mais representativas. Aquele timbre inconfundível invadia nosso cotidiano, anunciando os jogos da seleção brasileira, os resultados das eleições, o réveillon. Na Serra, durante muito tempo, na passagem do ano, as luzes da cidade se apagavam, marcando o fim de um ciclo e o começo de outro. A contagem regressiva era feita por Seu Hilton, que com entusiasmo contagiante despertava em cada um dos ouvintes a esperança em dias melhores, a sensação de recomeço a partir daquela zero hora. Wilson Maux, teatrólogo, escritor, radialista, professor e ator, é também personagem marcante nessa história. Diariamente, nossas manhãs eram banhadas por sua voz potente. Começava na alvorada, com o Desperta, Campina e a Ave-Maria; depois, no Jornal Integração; por fim, ao meio-dia, com o quadro Bom dia para você, no qual lia crônicas de sua autoria. Dizem que, ao todo, ele redigiu mais de mil textos, muitos dos quais verdadeiras pérolas. A lista de ouro da 93.1 é vasta e inclui Flávio Barros, Jorgito, Toninho Lima, José Lyra, Zé Nobre, Inaudete Amorim, Fátima Silva, Kalilka Vólia, Alan Ferreira, dentre tantos outros, da velha e nova geração.

Curiosamente, programas computacionais eram transmitidos aos sábados, à tarde. Escutávamos frequências, no limiar entre o som e o ruído, assim como uma música difusa, que os aficionados gravavam em fitas K-7, que serviam como unidades de memória auxiliar dos primeiros computadores. Tratava-se, portanto, de um protótipo de um sistema para transmissão de dados em um ambiente wireless, utilizando o rádio. As canções da Noite dos Namorados embalaram meus sonhos, meu encontro com Jane Cely.

A minha relação com a emissora intensificou-se quando passei a colaborar com o Clássicos Eternos. Mesmo sem conhecimentos específicos na área, ofereci-me para a tarefa. Queria adentrar no fascinante mundo da radiodifusão. Comecei auxiliando Marilena Motta na seleção das obras, escrevendo o roteiro. Em seguida, assumi-o integralmente, produzindo-o e apresentando-o. Foram quatro anos de intensa atividade matinal, sempre aos domingos, no nevoento topo da Colina da Palmeira. Divulgamos eventos e exploramos a música de diferentes períodos e compositores, obras instrumentais e vocais, com apresentações ao vivo e entrevistas. Esta foi uma experiência inesquecível, transformadora. É por isso que, nesse dia de festa, faço votos de vida longa, reforço minha gratidão, receba meus parabéns, Campina FM.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 20 de outubro de 2018

Gente Feliz

A Fundação Nacional de Artes e a Universidade Federal do Rio de Janeiro realizaram esta semana o Seminário Música Popular Brasileira Em Pauta. Realizado na Escola de Música da UFRJ, o evento contou com a presença de representantes de várias regiões do país que trabalham com a música em suas variadas configurações, incluindo ensino, pesquisa, difusão, produção, gestão e preservação.

Nas mesas redondas, tratamos do espaço que a música tem ocupado nas políticas públicas de cultura, a música brasileira no contexto universitário, o intercâmbio entre universidades e instituições culturais. Constatamos que temos caminhado numa mesma direção, diminuindo as fronteiras do erudito/popular, inserindo essas duas formas de representação do fazer/saber musical na academia, nas agências de fomento à arte. Os relatos dos gestores Marcos Souza (Centro de Música da FUNARTE), Elizeth Higino (Biblioteca Nacional), Mário Chagas (Instituto Brasileiro de Museus), Ana Lígia de Medeiros (Casa Rui Barbosa), Cláudia Castro (Museu Villa-Lobos) e Ellen Krohn (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional) ratificaram o que já sabíamos, isto é, que a  escassez de investimentos e a precarização de tais órgãos vêem gradualmente pondo em risco a preservação da nossa memória e identidade.

O clima de apreensão marcou o encontro. O temor é que a ascensão da extrema direita ao poder agrave ainda mais esse quadro, colocando em risco todas as conquistas dos últimos anos, a liberdade de expressão. A análise dos programas de governo dos candidatos revela os retrocessos que estão por vir numa eventual vitória desse grupo. Tirem suas próprias conclusões, confiram os dois projetos disponíveis no site do Tribunal Superior Eleitoral (Fernando Haddad -  Jair Bolsonaro). Pesquisem, nestes documentos, palavras-chaves como diversidade, cultura, arte, museus, bibliotecas, IPHAN, ANCINE e FUNARTE. Vejam quantas vezes elas aparecem em cada um, o que dizem, quais as propostas, o que enfrentaremos pela frente. Os discursos dos candidatos também denunciam o que eles pensam sobre financiamento de projetos artísticos, sobretudo em relação à Lei Rouanet.

Na diversa capital fluminense, realimentei a esperança em dias melhores, distantes dessa sombra de medo, violência e atraso que nos ronda. Pensei nos meus filhos, nos meus alunos, no meu papel enquanto educador, artista, cidadão, ser político. Reencontrei velhos amigos. Renovei o compromisso, o engajamento na luta por uma sociedade mais justa, livre, civil, sem o controle das forças armadas. Ví que não estou sozinho. Andei por becos e vielas, pela Rua do Passeio e os Arcos da Lapa, contemplando o contorno imprevisível das manhãs, das montanhas e do mar, dando asas à imaginação, num Circo Voador, ouvindo Vanessa da Mata, com sua voz maviosa e desafiadora, cantar-dizer que não se incomoda com pouco, que se cuida para não ficar amargurada, que não é do tipo que reclama e fica sentada. Vamos à luta, Gente Feliz!

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

É preciso saber viver

A Licenciatura e o Bacharelado em Música da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), frutos do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), foram oficializados por intermédio das Resoluções Nº 8/2008, Nº 8/2012 e Nº 3/2013, da Câmara Superior de Ensino, que aprovaram a criação dos referidos cursos e definiram as suas estruturas curriculares, respectivamente. A abertura desse espaço para a formação profissional teve grande impacto na área polarizada pela Rainha da Borborema. Frequentemente, recebemos pessoas oriundas de várias cidades da Paraíba, incluindo as microrregiões do agreste, brejo, cariri, curimataú, litoral e sertão, bem como de outros estados, dentre os quais Piauí, Ceará e Pernambuco. Os jovens advém das tradicionais bandas de música, de grupos de diferentes denominações religiosas, das mais variadas escolas especializadas destes recantos.

Além de uma vasta e rica experiência, que contempla múltiplas facetas do fazer/saber musical, esses estudantes trazem consigo a certeza de que só por meio da educação poderão alçar patamares cada vez mais altos no competitivo e especializado mundo de trabalho. Sem formação técnica e qualificada, suas carreiras estarão incompletas, ficarão comprometidas. O ingresso destes profissionais no mercado tem alterado a realidade local, promovendo ruptura, contribuindo para a criação de um novo panorama, fato que temos testemunhado ao longo de quase uma década. Os shows que assistimos essa semana, Roberto por elas e Tributo a Dominguinhos, foram assinados por uma equipe da UFCG. Os dois produtos são reflexos dessa mudança.


Os egressos também estão por aí, disseminando o que vivenciaram na Serra. Muito embora ainda não tenhamos pós-graduação, hoje mais de vinte ex-alunos estão nos âmbitos do mestrado e do doutorado, no Brasil e no exterior. Alguns, já concursados, lecionam nos Institutos Federais, enquanto outros atuam como cantores, instrumentistas, maestros, compositores, arranjadores e produtores em instituições privadas, projetos sociais, empreendimentos diversos.


E o que isso nos revela? Que o conhecimento amplia horizontes, transformando a vida de um indivíduo, de um povo, de uma nação. Que o REUNI, mesmo não sendo unanimidade, foi o maior projeto que o Governo Federal desenvolveu na esfera superior nas últimas décadas. Que é necessário continuá-lo, visto que tem contribuído para a democratização do acesso à universidade, a consolidação da cidadania, a construção de um país mais justo. Que é papel das instituições universitárias produzir e socializar ciência, arte e cultura através do ensino, da pesquisa e da extensão, visando a melhoria da qualidade de vida. Que estamos no caminho certo e que nele devemos permanecer, avaliando-o e aprimorando-o. Que nossos gestos, ações e discursos estão carregados de múltiplos sentidos, que poderão inspirar nossos discentes, despertando em cada um a chama da esperança e o compromisso profético, político e poético que sulca e molda a nossa atividade pedagógica, criativa e artística e pelos quais é preciso saber viver.


Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 8 de setembro de 2018

Coral do Amazonas

Durante a minha estadia em Manaus, além de participar do Congresso da ANPPOM, trabalhei com o Coral do Amazonas, grupo oficial do estado e que é formado por 64 cantores. A trajetória do coro, que já foi regido por maestros brasileiros e estrangeiros, a exemplo de Zacarias Fernandes, é repleta de grandes realizações, dentre as quais se destaca a participação em mais de trinta montagens do Festival Amazonas de Ópera.

Os ensaios do ensemble, realizados de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 11h30, ocorrem num prédio suntuoso, o Centro Cultural Palácio da Justiça, localizado no coração da capital, por trás do imponente teatro. O dia-a-dia começa com a organização do espaço, sob a supervisão de Cacilmara Pinto. Em seguida, o renomado tenor Juremir Vieira conduz a preparação corporal e vocal. O maestro titular, Otávio Simões, conta com o auxílio do regente assistente, Fabiano Cardoso, e do pianista Renan Branco.

Para esta experiência, selecionei peças de compositores paraibanos, aqui nascidos ou radicados, englobando música sacra e profana, nomes consagrados e em ascensão, composições a cappella e com acompanhamento. A Missa Brevis N° 2 (Reginaldo Carvalho, 1932-2013), escrita em 1954 e que contém apenas Kyrie e Gloria, foi interpretada integralmente pela primeira vez, porque o manuscrito do Gloria só fora descoberto e editado recentemente. O ineditismo do momento potencializou os aspectos emocionais da nossa performance, visto que o aniversário natalício do compositor ocorrera naquela semana. No campo sacro, apresentamos também Padre Nuestro (Eli-Eri Moura, n. 1965) e Santo! Santo! Santo! (Samuel Cavalcanti, n. 1982). Na parte secular, começamos com Madrigal (José Siqueira, 1907-1985), uma livre adaptação que fiz, preservando a parte original do piano. Do manauara Pedro Santos (1932-1986), que viveu muitos anos em João Pessoa, cantamos Tema para assovio, que integra a trilha sonora do filme Romeiros da Guia, uma produção de 1962 e que tem a assinatura do cineasta Wladimir de Carvalho. Além da Cantiga (Manuel Bandeira e Reginaldo Carvalho), inseri minha Guajira espúria, baseada num tema recolhido por Mário de Andrade em suas andanças pelo Nordeste. Encerramos com Vamo vadiá (José Alberto Kaplan, 1935-2009), um coco animado e cheio de malícia. Deliberadamente, todas as peças da segunda seção, de algum modo, faziam referência à água, unificando, dessa maneira, arte, natureza e vida, elementos tão abundantes naquela região.

A minha curta temporada com esse seleto conjunto profissional foi espetacular. O grupo, muito receptivo e aberto, encarou os desafios musicais e vocais com grande habilidade técnica e artística, ao longo dos ensaios e no recital, ampliando o seu repertório. Por sua estrutura, proposta e qualidade, esse coro é uma referência no cenário brasileiro, razão pela qual sinto-me honrado e feliz por ter tido essa oportunidade única. Parabéns e muito obrigado, Coral do Amazonas.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

A UFCG como centro de pesquisa musical

Estive em Manaus-AM recentemente para participar do XXVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM). Foi uma semana intensa, repleta de grandes realizações e conquistas. Ao meu lado, na comitiva da Universidade Federal de Campina Grande, estavam os professores Luís Passos e Jorge Ribas, bem como Adriano Sousa, Herbert Bezerra e Halley Chaves, compositores e ex-alunos do Bacharelado em Música. Estávamos lá para apresentar os vários artigos que produzimos nos nossos grupos de pesquisa e também adentrar no universo da pós-graduação. Essa ação foi importante e necessária, porque, nesse momento, estamos à espera do resultado da avaliação do projeto de criação de um Mestrado Profissional em Música, com foco em Criação/Produção Musical, Performance e Educação Musical, que submetemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES). Se aprovado, nosso programa deverá ser implementado em 2019, expandindo, assim, as possibilidades para a qualificação em nossa região.

Durante a assembleia geral do conclave, aprovamos os nomes das universidades que irão sediar o evento nos próximos dois anos. Em 2019, será na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), no Rio Grande do Sul, e em 2020, aqui, na UFCG. Lançamos a nossa proposta baseados em vários aspectos. Inicialmente, a localização da cidade facilitará a participação de um grande número de pesquisadores, professores e estudantes dessa parte do país. Atualmente, no Nordeste, temos cursos de Música, no âmbito da graduação e da pós-graduação, em várias universidades federais, incluindo UFMA, UFPI, UFC, UFCA, UFRN, UFPB, UFCG, UFPE, UFAL, UFS e UFBA; em algumas estaduais, dentre as quais UEMA, UECE, UERN e UEFS; e em vários institutos federais e instituições privadas. No caso específico da UFCG, nosso quadro docente conta com dezessete professores, 150 alunos regularmente matriculados na Licenciatura e no Bacharelado, além de vários grupos instrumentais e vocais, formados por docentes e discentes, todos com ampla atuação no cenário nacional e internacional.

O trigésimo encontro anual da ANPPOM, na UFCG, servirá para expandir, e ao mesmo tempo interiorizar e fortalecer, as ações da organização. Nos últimos cinco anos, os congressos foram realizados em São Paulo-SP (2014), Vitória-ES (2015), Belo Horizonte-MG (2016), Campinas-SP (2017) e Manaus-AM (2018). A experiência que temos na realização de eventos artísticos e acadêmicos e o apoio da administração superior da Universidade Federal de Campina Grande foram determinantes para a nossa propositura.

Finalmente, à semelhança do Festival Internacional de Música (FIMUS), que colocou Campina Grande na rota da música de concerto do país, a realização deste evento na Rainha da Borborema contribuirá para fortalecer nossas ações no campo do ensino, da pesquisa e da extensão e será fundamental na implementação e consolidação da pós-graduação em nossa instituição, inserindo, deste modo, a UFCG no grupo dos grandes centros de pesquisa musical do Brasil.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Para além das notas e ritmos

Para além das notas e ritmos: uma abordagem cognitivo-fisiológica sobre a prática do solfejo é o título de uma das comunicações que apresentamos no XXVIII Congresso da ANPPOM. Recorte de uma pesquisa mais ampla, que trata da análise de métodos de solfejos polifônicos utilizados no contexto da prática coral, neste estudo eu e Breno Pereira Barbosa discutimos alguns dos aspectos cognitivos e fisiológicos envolvidos no ato da leitura musical, baseado em várias abordagens. Nosso intuito foi apresentar subsídios teóricos que possam auxiliar o regente ou educador musical no trabalho com coros amadores ou profissionais, de faixas etárias distintas. O texto completo pode ser acessado nos Anais do Congresso.

Em nossa fundamentação, revisamos os modos como os hemisférios cerebrais atuam no processo perceptivo e os elementos que influenciam o neurodesenvolvimento durante a infância e que poderão ter implicações na maturidade. Abordamos o papel do treinamento dirigido em direção à excelência artística, visto que os alicerces de qualquer aprendizagem são a repetição e o retorno. Analisamos os diferentes tipos de memória e suas respectivas funções, pois o indivíduo que não consegue reter informações tem dificuldade em realizar comparações, e todo solfejo é baseado numa sequência intervalar, que depende de experiências musicais anteriores, de analogias.


Os movimentos oculares também foram investigados, visto que os olhos não se movem linearmente em uma partitura musical. Estudos demonstram que os indivíduos que possuem menores habilidades de leitura musical se utilizam de longas fixações, enquanto aqueles que possuem maiores habilidades fazem associações com o repertório que lhes é familiar, demonstrando capacidade de antecipar o que está por vir na partitura. Portanto, a eficiência do solfejo está associada a múltiplos fatores, dentre os quais a memória, o movimento dos olhos, o conhecimento teórico e as experiências que uma pessoa acumula.


O indivíduo que solfeja de forma eficaz desenvolve, portanto, uma complexa rede cognitiva, de ordem superior, que inclui, dentre outros aspectos, a capacidade de imaginar/ouvir sons em silêncio, por exemplo. O domínio deste mecanismo intelectual é basilar para a prática coral, ampliando as possibilidades interpretativas e as experiências do músico, seja ele instrumentista ou cantor. Por isso, o regente/educador precisa observar o cantor/aluno e averiguar de que modo os aspectos fisiológicos, o conhecimento teórico e as vivências musicais que traz consigo têm contribuído para o seu desenvolvimento. A observação de tais fatores poderá permitir um diagnóstico mais preciso sobre a origem dos problemas que afetam um membro ou o coro como um todo, contribuindo, desse modo, para a definição das estratégias que nortearão o planejamento e a ação didático-pedagógica daqueles que administram o grupo. Para que todos cantem afinados, no tempo e com técnica, de forma consciente, segura e prazerosa, necessitamos compreender o solfejo para além das notas e ritmos.


Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

terça-feira, 28 de agosto de 2018

José Alberto Kaplan e a arte engajada

O dilema entre arte engajada versus arte pura marcou a trajetória do compositor José Alberto Kaplan, sobretudo a partir do final da década de setenta, quando compôs Duas Canções Irreverentes (1978), Trilogia (1980-1982), Ensino Público e Gratuito (1982), Canção da Saída (1984), Burgueses ou meliantes (1984), Duas Canções Natalinas (1984), Natal do Homem Novo (1984) e O Refletor (1988). Além de seus textos, nestas peças ele utiliza versos de Leandro Gomes de Barros, Ferreira Gullar, Ernest Cardenal e Bertold Brecht, todos com forte teor irônico, satírico, crítico e político. Durante o XXVIII Congresso da ANPPOM, eu, José Adriano de Sousa Lima Júnior e Luciênio de Macêdo Teixeira apresentamos uma pesquisa que teve como objetivo analisar a Cantata pra Alagamar no contexto da sua produção, recepção e circulação. Para ler o texto completo, basta acessar os Anais do Congresso.

No final dos anos setenta, Kaplan estava interessado em produzir uma música funcional (Gebrauchsmusik), em conexão com as ideias de Kurt Weill e Bertold Brecht. Foi nesse panorama que nasceu a Cantata pra Alagamar, que teve como ponto de partida o conflito latifundiário ocorrido na Fazenda Alagamar, no interior da Paraíba. A Cantata, escrita em 1979 para narrador, jogral, solistas, coro misto e conjunto instrumental, com texto de Waldemar Solha no padrão do martelo agalopado e da gemedeira, tem vinte e três movimentos. Nas palavras do próprio autor, “é um exemplo de arte engajada, que enfrenta os problemas do seu tempo sem perder de vista o horizonte estético.”

A instabilidade econômica e política dos anos setenta, no Brasil, afetou diretamente a vida no campo, provocando o êxodo rural. O Proálcool contribuiu para esse quadro, e o conflito de Alagamar se insere neste ambiente, que, de forma polissêmica e polifônica, está presente na Cantata, posto que o seu enunciado demarca a posição dos autores, manifestando, ao mesmo tempo, a relação com o objeto do enunciado e também a relação do compositor e do poeta com os enunciados dos outros. Quando analisada fora desse contexto, elimina-se o conflito dialógico e ideológico que a obra revela, as marcas atenuadas da alternância dos sujeitos falantes que sulcaram o enunciado por dentro, como pontua Bahktin.

Relevante para a Estética é o fato de que a Cantata, um exemplo de arte engajada, contém elementos intrínsecos que validam a sua autonomia musical, assegurando a fruição do intérprete-ouvinte-analista. A sua verdade está para além do panfleto motivacional que levou o compositor a escrevê-la. A obra, que exalta a desobediência civil como forma de luta e enfatiza a importância da organização como meio de conseguir a força necessária para enfrentar os poderosos, permanece atual, ocupando lugar de destaque na literatura coral brasileira do século XX, tanto pelo seu conteúdo político-poético quanto pela sua estrutura musical-estética.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 22 de abril de 2018

Os cursos de Música da UFCG

A Licenciatura e o Bacharelado em Música da Universidade Federal de Campina Grande foram criados em 2008, por meio do programa REUNI. As primeiras turmas entraram no semestre 2009-2. Anualmente, oferecemos quarenta vagas, sendo trinta para a Licenciatura e dez para o Bacharelado, que tem ênfase em Composição, Regência, Canto, Produção Musical e Práticas Interpretativas, esta última contemplando Violão, Violino, Viola, Violoncelo, Contrabaixo, Piano, Clarinete, Tuba, Trombone e Bombardino. O corpo docente conta com dezesseis professores, dos quais oito são doutores, sete são mestres e um é especialista, todos com ampla experiência e formação, no Brasil e no exterior.

Os cursos têm duração de quatro anos. Neste período, o aluno, além de cursar matérias teóricas e práticas, participa de diversos projetos, programas e conjuntos, dentre os quais UFCG Brass, Cordas e Sopros, Big Band, Orquestra de Câmara, Orquestra de Violões e os seis coros ligados ao CanteMUS - Laboratório Coral da UFCG (Coro Infanto-Juvenil, Coro Feminino, Coro Masculino, Coro Intergeracional, CorUNAMUS e Coro de Câmara de Campina Grande). Esses conjuntos instrumentais e vocais têm se apresentado em diversos eventos artísticos e culturais no país, nos Estados Unidos e na Europa.

No que diz respeito à investigação científica, temos três equipes de trabalho: 1) Herança Cultural: patrimônio, memória, identidade e representação; 2) Grupo de Pesquisas Unificadas em Artes e Música (GRUNAMUS); e 3) Grupo de Pesquisa Musical Aplicada (MUSAP). Os resultados das pesquisas realizadas em tais núcleos têm sido apresentados em congressos promovidos por entidades como a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), International Federation for Choral Music (IFCM) e International Association for Semiotic Studies (IASS). O Festival Internacional de Música de Campina Grande, fruto da parceria entre a UFCG, a UEPB e a Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, tem permitido a interação dos nossos alunos com nomes de referência na área. Alguns deles, por conta desse contato, ganharam bolsas de estudos em universidades norte-americanas. De modo geral, os alunos concluem os cursos no prazo mínimo, inserindo-se imediatamente no mercado de trabalho e/ou na pós-graduação. Atualmente, cerca de vinte egressos já estão em programas de Mestrado e Doutorado.

Almejamos a excelência e a ampliação das nossas ações no campo do ensino, da pesquisa e da extensão. Neste sentido, e para marcar a nossa primeira década de existência, estamos trabalhando na criação da Unidade Acadêmica de Música (UNAMUS) e na atualização do currículo, à medida que aguardamos a aprovação da proposta de um novo Mestrado Profissional em Música, já submetida à CAPES, e que irá preencher uma lacuna importante na região, ratificando que estamos no caminho certo. Para mais informações, visite nosso site.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 14 de abril de 2018

Festival de Música da UFG

O Festival Internacional de Música Belkiss S. Carneiro de Mendonça chegou à quadragésima segunda edição este ano. Promovido pela Universidade Federal de Goiás, é, nesta categoria, o mais antigo do país realizado de forma ininterrupta. Esta foi a terceira vez que tive a honra de participar deste importante projeto, que traz para a cidade de Goiânia estudantes e profissionais de diversas partes do Brasil e do mundo.

Na cerimônia de abertura, a professora Glacy Antunes compartilhou conosco um pouco da história do Festival, destacando o espírito empreendedor dos seus idealizadores, dentre os quais Dona Belkiss Spencieri. O professor Edward Madureira, Reitor da UFG, destacou que, ao longo dessas quatro décadas, as crises pelas quais o país passou ameaçaram a continuidade do evento inúmeras vezes. No entanto, o engajamento daqueles que fazem a Escola de Música e Artes Cênicas e o efetivo apoio da administração superior da UFG foram determinantes para a continuidade do empreendimento.

Ao longo das aulas, ensaios e palestras, reafirmei a necessidade de valorizarmos as oportunidades, de transformarmos o limite em possibilidade, de assumirmos a tripla dimensão da nossa missão profética, política e poética. Narrei um pouco da minha vida profissional, conectando o início de tudo, quando tocava flauta doce no topo da goiabeira, e a minha estreia no Carnegie Hall, ano passado, com a Missa de Alcaçus, de Danilo Guanais. Fiz paralelos entre o micro universo da prática coral e a estrutura macrossocial, reiterando a força dos nossos gestos nos dois contextos. Discuti os inúmeros aspectos da minha práxis artístico-pedagógica, mostrando a importância de conceber a música para além da frequência, do ritmo, da técnica. No que diz respeito ao repertório, selecionei para esta temporada obras da literatura coral europeia e norte-americana. Meu foco, contudo, foi a música coral brasileira. Para fugir do lugar comum, busquei novas obras, dentre as quais É madrugada, da carioca Stella Junia, e várias peças de compositores do Nordeste. O Padre Nuestro, de Eli-Eri Moura, e a Dança de Mariinha, de Beetholven Cunha, foram interpretados pela primeira vez no país. Um dos destaques foi a suíte formada pelo Tema para assovio, de Pedro Santos, e a Cantiga, de Reginaldo Carvalho com poema de Manuel Bandeira. O baixo-barítono Angelo Dias deu um show, desta vez, assoviando.

Encontros como este são essenciais para a divulgação da nossa produção musical e fortalecem nossos cursos, permitindo o intercâmbio entre novos e conhecidos professores e artistas, expandindo os horizontes dos alunos. Parabéns às professoras Ana Flávia Frazão e Gyovana Carneiro, pela organização e direção deste belo Festival. Após uma semana tão intensa, volto para casa banhado pela luz do dia, profundamente grato por tudo e a todos, com a mala repleta de novas experiências, pronto para continuar a caminhada.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sábado, 17 de março de 2018

Messias

Messias, de G. F. Händel, é um dos oratórios mais cantados em todo o mundo. Muito embora concebido para a Páscoa, é também interpretado durante o Advento em serviços litúrgicos de diferentes igrejas cristãs, auditórios e teatros. Por conta da sua extensão, frequentemente apresentam-se excertos da obra, incluindo recitativos, árias e coros da primeira, segunda e terceira parte.

Referência na literatura do período barroco, a peça pode ser facilmente adaptada. Quando não há possibilidade de incluir solistas, faz-se uma seleção contemplando os movimentos para coro. Se, por outro lado, não há orquestra, é possível interpretá-la com um quarteto de cordas e contínuo ou até mesmo apenas com um piano. Com relação à orquestração, é importante observar as múltiplas versões existentes, algumas com traços mais românticos, que incluem vários instrumentos diferentes daqueles da proposta original. Na Internet existem muitas edições que apresentam divergências nos tons de algumas árias, bem como na estrutura rítmica de alguns corais. Para dirimir dúvidas, é preciso compará-las e consultar documentos históricos, assim como ouvir performances conduzidas por autoridades da área, dentre os quais Robert Shaw e Vàclav Lucs.

O oratório apresenta desafios, como, por exemplo, as coloraturas, que, às vezes, intimidam regentes e cantores, sobretudo em coros amadores. Inicialmente, é preciso compreender tais passagens ritmicamente. Como os melismas estão agrupados, deve-se enfatizar a primeira nota de cada grupo, destacando-se os tempos estruturais do compasso com o intuito de criar micro e macro tensão fraseológica. Como exercício, as passagens melismáticas podem ser decompostas, e as notas, uma a uma, acrescentadas gradualmente. Fundamental é reduzir a velocidade da execução para fins de aprendizagem e precisão. Outra possibilidade é pedir aos cantores com mais domínio técnico que executem as coloraturas com clareza, articulando as notas sem colocar um “h” aspirado antes de cada vogal, enquanto aqueles que têm mais dificuldade poderão cantar o mesmo trecho com as sílabas “do” da”. A pronúncia da consoante “d”, de forma delicada e discreta, ajudará na projeção da voz, na articulação, na manutenção do tempo, na definição dos afetos, isso tudo, é certo, sem desconsiderar o suporte respiratório e a ressonância. Estes são alguns dos recursos amplamente utilizados em muitos coros e que têm dado excelentes resultados, não obstante seja matéria controversa.

Nos próximos dias, interpretaremos passagens deste repertório de formação, patrimônio da humanidade, em Teresina e Campina Grande. A experiência, pioneira nas duas cidades, promoverá o intercâmbio entre músicos do Projeto Música Para Todos, IFPI, IFG, UFRN, UFPI e UFCG. Será, sem dúvidas, um marco em nossas trajetórias pessoais e profissionais, tanto pela relevância do desafio artístico-musical quanto pela mensagem do texto, que fala do Nascimento, Paixão e Redenção de Cristo, o Messias.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)