quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Por isso, minha gratidão, Teresina.

A primeira vez que estive em Teresina foi em outubro de mil novecentos e noventa e dois. Fui para a capital piauiense por conta do concurso público para professor da Universidade Federal do Piauí. Passei uma semana por lá, fazendo provas, semeando novas amizades. Voltei para casa feliz, aprovado, com a imagem dos fins de tarde alaranjados e o aroma dos cajueiros. Aqueles dias foram suficientes para compreender o sentido da expressão bê-erre-o bró, usada em referência ao quadrimestre final do ano e baseada nas últimas sílabas dos meses que o compõem, e que sintetiza as altas temperaturas da estação.

No ano seguinte, no dia do meu aniversário, fui contratado. Migrei para lá com o pouco que tinha, algumas roupas e livros, bem como todos os sonhos que poderia carregar comigo. Ao chegar, fui recepcionado pelo maestro Emmanuel Coelho Maciel, que me acolheu com carinho paternal. A professora Lúcia de Fátima também me recebeu como uma mãe, sempre muita atenciosa. Depois, quando Jane chegou, a caminhada ficou ainda melhor.

Gradualmente, conheci a cidade, incluindo sua história, seus lugares, suas gentes e seus sabores. Cruzei com o Cabeça-de-Cuia, o Troca-Troca, a Frei Serafim, a igreja de São Benedito, o Encontro dos Rios, o doce de buriti, a cajuína com Maria-Isabel. Interagi com vários alunos, profissionais e grupos, dentro e fora da universidade. Convivi com colegas como Reginaldo Carvalho, regi o Madrigal Vox Populi, conheci o Projeto Música Para Todos e também vi nascer, tocando flauta ao lado de Zé Rodrigues, a Orquestra Sinfônica de Teresina. Fiquei impressionado com o trabalho do professor Marcílio Flávio Rangel. Radicado na Chapada do Corisco há muitos anos, esse paraibano entrou para a história daquele lugar por conta das suas ações no campo humanitário e educacional. Seu legado está presente na Casa Dom Barreto, na Escola Popular Madre Maria Vilac, no Instituto Dom Barreto, onde Vinicius e Sofia estudaram. Foi para meus filhos e seus colegas que compus várias canções, muitas das quais ainda estão presentes no cancioneiro daquele educandário.

A Universidade Federal do Piauí foi também minha escola. Lá aprendi a lecionar, a ampliar meu espírito empreendedor e a participar ativamente da administração universitária, percebendo os limites e possibilidades da gestão pública. Naquela instituição, atuei de forma intensa e vivi uma das maiores histórias de amor da minha vida ao lado dos integrantes do Madrigal da UFPI (veja vídeo), grupo que regi por quatro anos e no qual tive grandes cantores, muitos dos quais hoje são meus amigos e frequentam a minha casa, o meu coração. Como o tempo decanta tudo, encontrei hoje essas memórias guardadas bem no fundo do peito. Por isso, minha gratidão, Teresina.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

*Para Teresina, no dia da celebração dos 165 anos.

domingo, 13 de agosto de 2017

Se não se amarrar, não vende!

Tocar ou cantar em grupo é uma tarefa desafiadora, pois, além de interpretar o repertório, executando-o no tempo, afinado e com técnica, é preciso observar o outro, interagindo, ao mesmo tempo, de forma autônoma e interdependente. Para ler o que há por trás de cada olhar e movimento, um grupo necessita ensaiar de forma consistente por um período considerável de tempo. Muitas vezes, as informações são sutis e passadas discretamente, suprimindo toda e qualquer necessidade de verbalização. Mas esse conhecimento só brota com a intimidade, que, por sua vez, é fruto de uma convivência saudável e pautada no respeito e na confiança.

Como regentes, desenvolvemos um cabedal de gestos com o qual nossos coros, bandas e orquestras se familiarizam. Muito embora pretensamente universais, eles carregam elementos idiossincráticos, com os quais chamamos a atenção para pontos específicos, dentre os quais a sonoridade, o fraseado, a precisão rítmica, os formatos das vogais, as passagens mais complexas. O olhar fixo nas mãos, o vai-e-vem do tronco e a forma como nos dirigimos para um determinado naipe falam sobre as verdades construídas ao longo de várias horas de ensaio. Quanto mais conseguimos ler as entrelinhas, captando, assim, o não-dito, mais diligente e carregada de sentido será a nossa performance. Quando há correspondência mútua, aí, então, a fruição estética se torna mais intensa, atingindo também o público, que reage proporcionalmente ao grau de envolvimento e cumplicidade que demonstramos no palco.

No documentário Sob o Céu de Zabé (veja o vídeo), produzido por Márcia Paraíso, em 2014, e que trata da vida e obra de Isabel Marques da Silva (1924-2017), mais conhecida como Zabé da Loca, uma passagem chama a atenção. Pitó, que integrava o terno-de-zabumba dessa famosa agricultora-musicista que viveu no Cariri Oriental paraibano, dá um depoimento singular, no qual descreve suas experiências e diz que “a música é uma entremelagem de juntamento.” Analisando a sua fala, nota-se que ao usar o vocábulo entremelagem, provavelmente uma corruptela do verbo francês entrêmeler, ele reitera o sentido de entrelaçamento que as práticas de conjunto, tanto instrumentais quanto vocais, evocam, convidando-nos também a refletir sobre a complexa relação que se estabelece entre o indivíduo e o grupo nestas e em outras instâncias do saber/fazer musical.

O emblemático discurso do percussionista revela a força da construção coletiva e reforça a crença de que para tocar e cantar com outras pessoas é preciso observar muito mais que as frequências, as durações e suas respectivas articulações e variações de intensidade. Sem diálogo e interação não há conjunto. Por isso, Pitó, de forma sábia e graciosa, é enfático ao comparar um grupo musical a um leirão de coentro dentro de um balaio num dia de feira. Nos dois contextos, “se não se amarrar, não vende!”

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)