quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Para além das notas e ritmos

Para além das notas e ritmos: uma abordagem cognitivo-fisiológica sobre a prática do solfejo é o título de uma das comunicações que apresentamos no XXVIII Congresso da ANPPOM. Recorte de uma pesquisa mais ampla, que trata da análise de métodos de solfejos polifônicos utilizados no contexto da prática coral, neste estudo eu e Breno Pereira Barbosa discutimos alguns dos aspectos cognitivos e fisiológicos envolvidos no ato da leitura musical, baseado em várias abordagens. Nosso intuito foi apresentar subsídios teóricos que possam auxiliar o regente ou educador musical no trabalho com coros amadores ou profissionais, de faixas etárias distintas. O texto completo pode ser acessado nos Anais do Congresso.

Em nossa fundamentação, revisamos os modos como os hemisférios cerebrais atuam no processo perceptivo e os elementos que influenciam o neurodesenvolvimento durante a infância e que poderão ter implicações na maturidade. Abordamos o papel do treinamento dirigido em direção à excelência artística, visto que os alicerces de qualquer aprendizagem são a repetição e o retorno. Analisamos os diferentes tipos de memória e suas respectivas funções, pois o indivíduo que não consegue reter informações tem dificuldade em realizar comparações, e todo solfejo é baseado numa sequência intervalar, que depende de experiências musicais anteriores, de analogias.


Os movimentos oculares também foram investigados, visto que os olhos não se movem linearmente em uma partitura musical. Estudos demonstram que os indivíduos que possuem menores habilidades de leitura musical se utilizam de longas fixações, enquanto aqueles que possuem maiores habilidades fazem associações com o repertório que lhes é familiar, demonstrando capacidade de antecipar o que está por vir na partitura. Portanto, a eficiência do solfejo está associada a múltiplos fatores, dentre os quais a memória, o movimento dos olhos, o conhecimento teórico e as experiências que uma pessoa acumula.


O indivíduo que solfeja de forma eficaz desenvolve, portanto, uma complexa rede cognitiva, de ordem superior, que inclui, dentre outros aspectos, a capacidade de imaginar/ouvir sons em silêncio, por exemplo. O domínio deste mecanismo intelectual é basilar para a prática coral, ampliando as possibilidades interpretativas e as experiências do músico, seja ele instrumentista ou cantor. Por isso, o regente/educador precisa observar o cantor/aluno e averiguar de que modo os aspectos fisiológicos, o conhecimento teórico e as vivências musicais que traz consigo têm contribuído para o seu desenvolvimento. A observação de tais fatores poderá permitir um diagnóstico mais preciso sobre a origem dos problemas que afetam um membro ou o coro como um todo, contribuindo, desse modo, para a definição das estratégias que nortearão o planejamento e a ação didático-pedagógica daqueles que administram o grupo. Para que todos cantem afinados, no tempo e com técnica, de forma consciente, segura e prazerosa, necessitamos compreender o solfejo para além das notas e ritmos.


Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

terça-feira, 28 de agosto de 2018

José Alberto Kaplan e a arte engajada

O dilema entre arte engajada versus arte pura marcou a trajetória do compositor José Alberto Kaplan, sobretudo a partir do final da década de setenta, quando compôs Duas Canções Irreverentes (1978), Trilogia (1980-1982), Ensino Público e Gratuito (1982), Canção da Saída (1984), Burgueses ou meliantes (1984), Duas Canções Natalinas (1984), Natal do Homem Novo (1984) e O Refletor (1988). Além de seus textos, nestas peças ele utiliza versos de Leandro Gomes de Barros, Ferreira Gullar, Ernest Cardenal e Bertold Brecht, todos com forte teor irônico, satírico, crítico e político. Durante o XXVIII Congresso da ANPPOM, eu, José Adriano de Sousa Lima Júnior e Luciênio de Macêdo Teixeira apresentamos uma pesquisa que teve como objetivo analisar a Cantata pra Alagamar no contexto da sua produção, recepção e circulação. Para ler o texto completo, basta acessar os Anais do Congresso.

No final dos anos setenta, Kaplan estava interessado em produzir uma música funcional (Gebrauchsmusik), em conexão com as ideias de Kurt Weill e Bertold Brecht. Foi nesse panorama que nasceu a Cantata pra Alagamar, que teve como ponto de partida o conflito latifundiário ocorrido na Fazenda Alagamar, no interior da Paraíba. A Cantata, escrita em 1979 para narrador, jogral, solistas, coro misto e conjunto instrumental, com texto de Waldemar Solha no padrão do martelo agalopado e da gemedeira, tem vinte e três movimentos. Nas palavras do próprio autor, “é um exemplo de arte engajada, que enfrenta os problemas do seu tempo sem perder de vista o horizonte estético.”

A instabilidade econômica e política dos anos setenta, no Brasil, afetou diretamente a vida no campo, provocando o êxodo rural. O Proálcool contribuiu para esse quadro, e o conflito de Alagamar se insere neste ambiente, que, de forma polissêmica e polifônica, está presente na Cantata, posto que o seu enunciado demarca a posição dos autores, manifestando, ao mesmo tempo, a relação com o objeto do enunciado e também a relação do compositor e do poeta com os enunciados dos outros. Quando analisada fora desse contexto, elimina-se o conflito dialógico e ideológico que a obra revela, as marcas atenuadas da alternância dos sujeitos falantes que sulcaram o enunciado por dentro, como pontua Bahktin.

Relevante para a Estética é o fato de que a Cantata, um exemplo de arte engajada, contém elementos intrínsecos que validam a sua autonomia musical, assegurando a fruição do intérprete-ouvinte-analista. A sua verdade está para além do panfleto motivacional que levou o compositor a escrevê-la. A obra, que exalta a desobediência civil como forma de luta e enfatiza a importância da organização como meio de conseguir a força necessária para enfrentar os poderosos, permanece atual, ocupando lugar de destaque na literatura coral brasileira do século XX, tanto pelo seu conteúdo político-poético quanto pela sua estrutura musical-estética.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)