domingo, 25 de dezembro de 2022

E vocês, o que fizeram esse ano?

2022 foi mais um ano dinâmico para o Coro de Câmara de Campina Grande. Começamos a temporada em abril, com o V Concerto da Paixão, realizando apresentações nas Clarissas e na Primeira Igreja Batista. A seleção teve Bach, Handel, Stölzel, Mozart, Schubert, Mendelssohn e Fauré.

Em junho, nos dedicamos à interpretação da literatura coral moçambicana, fruto da pesquisa de mestrado de Mauro Albino Muhera, meu orientando no PPGM-UFPB. Nessa iniciativa, preparamos quatro arranjos inéditos, a cappella e com acompanhamento. No mesmo período, montamos a Missa em Sol, de F. Schubert, que foi apresentada no encerramento do XIII Festival Internacional de Música de Campina Grande, em julho, juntamente com a Orquestra Sinfônica da UFPB, sob minha batuta. Concluindo o FIMUS, iniciamos a preparação para as celebrações dos dez anos do Projeto SESC Partituras, que foi realizado em agosto, contemplando o repertório coral dos compositores paraibanos ou aqui residentes, incluindo obras já disponíveis no referido site, bem como material inédito. Dentre as canções que estreamos estão aquelas oriundas do Projeto Sextilhas e que foram produzidas ao longo da disciplina Tópicos Especiais em Música: Introdução a Arranjo, oferecida aos discentes do Bacharelado e da Licenciatura em Música da UFCG, no semestre 2020-2, por mim e pelo professor Leonardo Margutti.

Entre o SESC Partituras e a nossa turnê para Salvador-BA, em outubro, gravamos duas peças: Suíte Nordestina (Ronaldo Miranda) e Escondumba-a-rê (Antônio Vaz), que integram a Coleção de Arranjos Corais de Música Folclórica Brasileira, publicada pela FUNARTE, que encomendou a referida produção. Em Salvador, trabalhamos em conjunto com o NEOJIBA, o Madrigal da UFBA e  a OSUFBA, sob a minha liderança e dos colegas Rafael Garbuio e José Maurício Valle Brandão, ambos da UFBA. Foi uma linda experiência, cuja culminância ocorreu no Museu de Arte Sacra. Quando voltamos da capital baiana, estudamos o Requiem (G. Fauré), que seria interpretado em parceria com a OSUFPB e o maestro André Muniz Oliveira, durante a Convenção Nacional da ABRACO, em novembro. Logo em seguida, nos dedicamos aos preparativos para o penúltimo concerto do ano, no qual regeria a OSUFPB e faríamos trechos do Messiah e um bloco de canções natalinas arranjadas por Angelo Fernandes e Fernando Barreto. O V Concerto para o Advento, na antevéspera de Natal, marcou o encerramento do período.

Analisando os dados relativos às nossas ações, identificamos vários aspectos positivos como, por exemplo, a variedade geográfica e linguística do repertório, o ineditismo de muitas obras que estreamos, o equilíbrio entre música sacra e secular e o foco na música brasileira. Precisamos cantar mais a cappella e divulgar as composições originais escritas por mulheres. Essa é a nossa promessa, o nosso desafio para 2023. E vocês, o que fizeram esse ano?

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

domingo, 6 de março de 2022

A guerra

La guerre, de Clement Janequin, é uma canção a cappella e a quatro vozes que trata da batalha de Marignan, onde hoje se localiza Melegnano, nos arredores de Milão. Os franceses, sob o comando de François I, ganharam o enfrentamento contra os suíços e que tinha como objetivo o domínio da região da Lombardia, importante centro comercial àquela altura.

Na seção inicial da composição, conclama-se o exército à luta. As palavras introdutórias convocam os soldados, que devem se preparar para o combate com coragem e por amor à França. Os símbolos pátrios são evocados, como podemos ouvir nos versos que fazem referência à Flor-de-Lis, utilizada nos brasões e escudos da realeza francesa como um símbolo de autoridade, pois esse lírio, de valor inestimável, está dentro do coração de cada um dos gauleses. Gradualmente, enumeram-se as armas que serão utilizadas no conflito, incluindo canhões, sabres, bombardas e lanças. Para o deslocamento das tropas, tocam os clarins, sopram as flautas, rufam os tambores. Já na segunda parte, o compositor descreve em detalhes a ação. Inicialmente, ouve-se a fanfarra e, na sequência, as mais variadas onomatopeias que ilustram o choque dos armamentos, o estouro das bombas, o galopar apressado dos cavalos, o som cortante das espadas em constante movimento. Nesse trecho, o foco é a briga, o tumulto, os corpos e os múltiplos interesses em confronto. Essa tensão é superada quando os suíços, percebendo a derrota iminente, começam a fugir. À medida em que correm, mostram as solas dos sapatos, como constatamos no texto ils montrent les tallons e tout est ferlore, bigot — esta última é uma expressão que combina francês e alemão, podendo ser traduzida como por Deus, tudo está perdido!

No que concerne aos aspectos rítmicos, melódicos e harmônicos, a peça é tranquila. Já do ponto de vista linguístico, é preciso decidir se a pronúncia adotada será aquela historicamente orientada. Além disso, é necessário pensar as estratégias que irão assegurar uma sonoridade leve, com controle do vibrato e que permita evidenciar as diferentes cenas e ambiências encontradas na partitura.

A primeira vez que ouvi La guerre (partitura - vídeo), fiquei impressionado. Por essa razão, tão logo tive oportunidade e condições técnicas, inseri-a no repertório do meu coro. E isso aconteceu com o Grupo Vocal Nós e Voz, em Campina Grande - PB, o Madrigal Vox Populi, em Teresina - PI, e o Madrigal da UFBA, em Salvador - BA. Se, por um lado, a obra do padre francês é fascinante, por conta da sua polifonia descritiva e por causa dos desafios técnicos, musicais e vocais, que oferece, por outro ela também nos faz pensar sobre os horrores que os duelos sangrentos provocam ao redor do mundo, nesse embate desmedido pelo poder econômico e político.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Será que antigamente eu era mais moderno?

Pequeninos Cantores da Borborema é o nome do primeiro grupo infantojuvenil com o qual trabalhei em Campina Grande. O coro, ligado à Fundação Artístico-Cultural Manuel Bandeira (FACMA), existiu entre agosto e dezembro de 1990, contando com doze coralistas, que ensaiavam duas vezes por semana. Nos nossos encontros, trabalhávamos conteúdos teóricos-musicais e interpretávamos variado repertório, formado por obras do cancioneiro popular e também inéditas.

Na estreia, no final daquele ano, apresentamos um recital no Cinema I, do Centro Cultural, com cinco peças, todas compostas para o grupo. A TV Paraíba fez uma reportagem sobre nossa atuação, cujo vídeo, guardado há mais de trinta anos, consegui recuperar recentemente e disponibilizo para amplo conhecimento. Lembro de duas peças que escrevi especialmente para a ocasião: Noite de Amor e Criança pensa também.

A primeira, em compasso binário composto, tem harmonia diatônica e é basicamente por graus conjuntos. O texto aborda a alegria da noite em que Jesus nasceu, concluindo com o verso: “Ai! Que bom seria / se o Natal fosse todo dia! / E a gente aprendesse a lição: / amar o nosso irmão!”. A partitura e o áudio, gravados posteriormente para um projeto escolar, podem ser conferidos nesses links. A segunda peça, Criança pensa também, foi um projeto experimental. Aqui, reconheço as influências recebidas já na graduação, na UFPB, em João Pessoa, bem como meu desejo de criar algo em sintonia com o meu tempo. Do ponto de vista estrutural, é uma forma ternária a cappella, a duas vozes com divisi, que combina partes cantadas e faladas em ostinato, numa tentativa de aproximar-se do rap daquela época. O texto é um convite à reflexão sobre ecologia, guerra e paz, valores éticos e morais, a educação das crianças e jovens, de modo geral. A partitura vem acompanhada de comentários sobre a obra, bem como o poema, o currículo do autor e uma bula, indicando alguns dos sinais utilizados, tudo isso, é claro, manuscrito e datilografado na minha velha Olivetti verde musgo, com tampa tipo malinha.

Mexendo nesses documentos, vi que, na primeira versão, usei o pseudônimo A. Z. do Nascimento, enquanto na última, que compartilho aqui e peço-lhes que a compreendam com os olhos de quem tinha vinte anos, assino com meu nome completo. Analisando a peça mais detalhadamente, identifiquei problemas métricos na poesia que me levaram a equívocos prosódicos, que foram contornados agogicamente, durante os ensaios. A textura é predominantemente acórdica, sem indicação de articulação e dinâmica, que “ficam à critério dos intérpretes,” conforme descrito. Depois de rever tudo isso, sorri com tais iniciativas juvenis, com essa vontade de criar, de expressar no papel minhas inquietações, de definir o meu caminho na música coral. Por fim, fiquei me perguntando: será que antigamente eu era mais moderno?

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Livros de solfejo: Melodia

Melodia: A Compreenhesive Course in Sight-Singing, organizado por Samuel W. Cole e Leo R. Lewis, foi publicado nos Estados Unidos no início do século XX. O livro, cujo título em português é Melodia: um curso completo para leitura à primeira vista e que pode ser adquirido gratuitamente nesse link, está dividido em quatro partes, apresentando exercícios mono e polifônicos, diatônicos e cromáticos, em diferentes tons, modos e métricas.

As atividades apresentam graus de dificuldade crescente. Boa parte daquelas que estão em uníssono foram também escritas na clave de fá, permitindo que todas as vozes se familiarizarem com a leitura em múltiplas claves. As que são a duas partes podem ser cantadas por vozes iguais ou mistas, em pares e também de maneira invertida, isto é, sopranos e contraltos cantam a voz inferior e vice versa. Esses duetos funcionam igualmente nas aulas individuais de canto. Alguns exemplos foram extraídos da literatura musical produzida entre o Renascimento e o período Romântico, o que quer dizer que estamos lidando com repertório. A inexistência de indicação de fraseado e variação de dinâmica, por exemplo, é um convite para que os intérpretes explorem distintos aspectos da estrutura musical em questão. O objetivo dos autores é preparar os (as) cantores (as) para que eles/elas possam interpretar a vasta literatura coral disponível no mercado da melhor forma possível, o que contempla cantar no tempo, afinado, com técnica e expressivamente.

Há quem refute as proposições de Cole e Lewis por considerá-las antiquadas, porque são eurocêntricas ou porque elas não estão vinculadas ao nosso contexto cultural, argumentos válidos, em certa medida, mas que não tiram o mérito da obra. Eu gosto da proposta e a utilizo em diversas situações, ciente das suas limitações e possibilidades. Como sou adepto da relativização, leio os exercícios nesse prisma, muito embora tenha consciência de que o compêndio fora concebido sob a perspectiva do solfejo fixo. Faço isso porque sei que nenhum método, per si, assegura o desenvolvimento de qualquer habilidade. É a maneira como nós o utilizamos, a relação que estabelecemos com ele, que nos leva a atingir resultados mais ou menos eficazes.

Dedicar parte do ensaio para o aprimoramento da leitura à primeira vista é um investimento válido para incrementar a performance de um grupo, razão pela qual essa prática pedagógica, seja por meio do sistema Dó-Fixo, Dó-Móvel ou em conexão com o repertório, precisa estar presente em nossa agenda. Minha recomendação é adotar as metodologias com as quais nos identificamos e conhecemos. De resto, eu acredito que, assim como uma obra não pode ser estigmatizada por conta da sua idade e procedência, não nos cabe condenar quem ainda acredita no solfejo como um dos caminhos para o fortalecimento da autonomia dos (as) nossos (as) coralistas.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O Canto Coral na Paraíba: Fernando Rangel

Fernando Antônio Machado Rangel é um nome relevante para a história do canto coral no estado da Paraíba, mais particularmente para a cidade de Campina Grande, onde ele atuou como docente do Núcleo de Extensão Cultural, posteriormente Departamento de Artes da Universidade Federal da Paraíba, entre 1978 e 1989. O professor, que é Licenciado em Música (UFPE, 1976) e tem mestrado em Contrabaixo (Western Michigan University, 1998), foi o responsável pelo retorno da prática coral ao seio da instituição, em 1986. O fato merece destaque porque essa atividade havia sido interrompida em 1982, com a saída do casal Nelson Mathias e Célia Bretanha da Serra da Borborema.

O coro que ele fundou, inicialmente denominado De Repente Canto e que depois passou a chamar-se Coro em Canto (programa), era formado por pessoas da comunidade e membros da UFPB. O grupo, que ensaiava duas vezes por semana, participou ativamente dos eventos artísticos e culturais locais, estaduais e regionais, apresentando-se em encontros e festivais na capital pernambucana e maranhense, dentre outras localidades. O conjunto era pequeno e se dedicava à interpretação de repertório variado, englobando peças da renascença à música contemporânea. A música brasileira tinha lugar reservado em todo recital (fotos). Foi com essa turma, por exemplo, que ouvi pela primeira vez o Memento Baiano, de Damião Barbosa Araújo.

Além de professor, contrabaixista e regente, Rangel também arranjou preciosidades de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e Chico Buarque para cantarmos, dentre as quais Minha namorada (áudio), Olha Maria e Valsinha; Gostosão, frevo de Nélson Ferreira; Odeon, tango brasileiro de Ernesto Nazareth; e Eleanor Rigby, sucesso dos Beatles. Os arranjos, a cappella e com acompanhamento, são desafiadores, seja por conta das harmonias e dos âmbitos vocais, seja em decorrência do idiomatismo de algumas propostas, sobretudo aquelas peças originalmente instrumentais e que foram adaptadas para voz. Todo esse material, que está sendo organizado, analisado e editado, precisa de visibilidade, visto que se trata de um repertório de primeira linha e que pode ser interpretado por amadores e profissionais.

Tive a oportunidade de aprender bastante com o mestre, pois fui seu aluno durante muito tempo nos cursos de extensão do DART e porque, como mencionado, engrossei a fileira dos tenores, ao lado de amigos como Fernando Barbosa, do Quinteto Armorial, e Carlos Alan Peres, do Cordas e Sopros, ambos ligados à UFPB. Rangel marcou sua passagem por Campina, deixando um legado importante, cujas ressonâncias ainda hoje podem ser percebidas nos trabalhos daqueles que tiveram a oportunidade de estar ao seu lado. Com a mudança para Recife, onde atuou na UFPE até aposentar-se, houve um novo hiato no movimento coral universitário campinense, realidade que só foi alterada nos anos noventa.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

A polêmica em torno dos coros cênicos

Response to Gordon Paine's Essay on Show Choirs  é o título do texto que Michael L. Masterson publicou no Choral Journal, em maio de 1982, contestando o artigo Coro cênico: algumas ideias para reflexão, de Gordon Paine.

O autor inicia sua exposição dizendo que concorda com muitos dos argumentos apresentados, muito embora considere a premissa básica de Paine inválida, pois a música comercial norte-americana é plural e tem valor cultural e educacional. Masterson é de acordo que certa literatura interpretada por coros performáticos pode até ser superficial. Contudo, destaca que, para além da matéria sonora, existem muitos outros aspectos que precisam ser explorados e compreendidos. Ao apresentar um ponto de vista elitista e excludente, Paine reduz as possibilidades de diálogo e caminha na direção oposta daquilo que Howard Swan defendera em seu discurso na convenção da ACDA, isto é, que regentes e educadores podem ajudar seus coralistas a perceberem que “as categorias de bom e ruim não têm conexão real com as categorias de clássico e popular”. Além disso, discentes devem aprender a construir tais sentidos a partir das suas próprias experiências com a música. A proposta é que esse movimento, que tem se dedicado à interpretação de repertório popular e jazzístico, contemple obras que tenham raízes na cultura norte-americana, pois, para Masterson, esse processo formativo não pode ser totalmente nostálgico e baseado no passado. Para ele, via de regra e independentemente do estilo, o fazer musical permite que as pessoas vivenciem a obra de arte de forma direta, “seja participando de sua recriação, no ensaio ou na performance.” As ideias de Masterson sintetizam o pensamento multiculturalista em voga no contexto educativo-musical estadunidense.

Grosso modo, podemos dizer que as proposições apresentadas são mais inclusivas e menos hegemônicas, ratificando a importância da abordagem intercultural e da diversidade, tanto na sala de aula-ensaio quanto no palco, na sala de concerto. O debate entre Paine e Masterson nos mostra que é preciso superar essa polarização, que, por um lado, superestima a literatura vocal historicamente consolidada por força do poder econômico e político de determinados grupos e povos e que, por outro, subalterniza tudo aquilo que não corresponde ao modelo imposto como padrão. Quem quiser conferir a resposta de Michael L. Masterson, aqui está o texto em língua portuguesa. Esse contraponto, muito embora seja reducionista, diga-se de passagem, é importante para alargarmos nossas discussões em torno de um tema ainda tão atual.

Por fim, a percepção das diferenças e a valorização das idiossincrasias são caminhos viáveis para uma convivência equilibrada e respeitosa. A nossa responsabilidade nesse processo é enorme. É, na verdade, um exercício permanente da cidadania, razão pela qual precisamos estar atentos, refletindo criticamente, pois nossas escolhas contribuirão para a preservação ou alteração desse status quo.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Coro cênico: algumas ideias para reflexão

Coro cênico: algumas ideias para reflexão é um texto de Gordon Paine, que foi publicado no Choral Journal, da American Choral Directors Association, em Maio de 1981, com o título The Show-Choir Movement: Some Food For Thought. O ensaio, que discute a expansão do coro cênico, coreográfico, performático, mexitivo, como queiram denominar, nos EUA, na década de 1970, provocou o debate no meio profissional, à época do seu lançamento.

Paine inicia sua explanação comentando sobre esse tipo de agrupamento na América do Norte e sobre o espaço que o tema ocupa em publicações como o Choral Journal. O autor critica os conjuntos que cantam repertório pop e jazz, afirmando que são influenciados pela TV e que o uso de microfones, sistemas de som, iluminação, figurinos, coreografia, dentre outros recursos, são, na verdade, embustes que mascaram o fazer musical técnica e artisticamente mais elaborado. Paine questiona a predominância dessa literatura coral, que ele classifica como comercial e moderna, em detrimento daquela que ele considera como de excelência e histórica, alegando que o crescimento descontrolado desse tipo de ensemble e repertório poderia extinguir programas corais consolidados, da mesma forma como as bandas marciais têm expulsado as orquestras de muitas escolas. Salienta, ainda, que não se opõe aos arranjos de “bom gosto, artísticos e comerciais nas seções mais descontraídas dos programas corais.” Muito embora temeroso com o caminho que se configurava, Paine conclui dizendo que esse frenesi tem um lado positivo e que seria necessário revisar os programas escolares norte-americanos que contemplam o canto coral como atividade educativa e artística.

A crítica de Paine carece de fundamentação, limitando-se ao âmbito músico-vocal. Na verdade, trata-se de uma coletânea de opiniões baseadas em crenças e valores pessoais, recheada de adjetivos que provocam o leitor, sobretudo por conta dos preconceitos que reforçam. É sempre bom lembrar que, em matéria de arte-música, para compreendermos o conflito entre tradição e ruptura é preciso ir além dos versos, das notas e dos ritmos. Antes, é necessário analisar as relações discursivas, os elementos políticos, econômicos e simbólicos que povoam as entrelinhas das práticas musicais em suas múltiplas configurações.

Apesar das limitações, esse é um documento que precisa ser lido e compreendido no contexto da sua produção, circulação e recepção, visto que, àquela altura, as discussões em torno da decolonialidade eram escassas, para não dizer inexistentes, nos círculos conservatoriais, por exemplo. Acredito que a leitura também é válida porque, no Brasil, esse é um tipo de proposta estética bastante difundida e, muitas vezes, parte desse embate é desconhecido, ignorado. Para quem quiser conferir na íntegra o documento e tirar suas próprias conclusões, identificando as transitoriedades e permanências do polêmico texto de Paine, compartilho a minha tradução, esperando contribuir para a compreensão do assunto.

Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)