A compreensão das diferenças entre sexo biológico,
identidade de gênero, expressão de gênero e orientação sexual é essencial para
quem trabalha com música. Esse entendimento, à luz de distintas correntes científicas,
nos dá embasamento, evita equívocos e constrangimentos, redireciona a nossa
práxis, ajudando-nos a combater estereótipos, contribuindo para a redução da LGBTfobia e o desenvolvimento das pessoas com as quais interagimos profissionalmente.
No que diz respeito à prática coral, observamos uma expansão
no número de grupos ligados à comunidade LGBTQI+, especialmente na América do
Norte e na Europa. O Gay Men’s Chorus
e o Trans Chorus of Los Angeles são
representantes desta população. Há uma grande variedade de estudos e documentários em língua inglesa que mostram o cotidiano destes e de outros conjuntos, que nos ajudam a vislumbrar
os limites e as possibilidades das ações políticas e educativas neste campo. O
mesmo tem acontecido com os solistas que atuam no mundo da ópera e da música de
câmara. Lucia Lucas, um barítono trans, e Holden Madagame, que começou a cantar
como mezzo e hoje interpreta papeis como tenor, são artistas que estão
inseridos no mercado e assumiram um protagonismo importante num contexto que,
muito embora notadamente conservador, está em transformação. De modo geral,
cantores e cantoras que fazem a transição passam por um longo processo de
adaptação, porque submetidos a um complexo tratamento médico e psicológico,
quase sempre à base de intervenção cirúrgica e muitos medicamentos. Essas
variantes podem afetar diretamente a produção da voz, exigindo uma abordagem atenta
de quem dirige e prepara vocalmente tais intérpretes.
A classificação vocal, enquanto dado supostamente determinado
e fixado pela biologia, perde a sua força hegemônica quando se questiona a
naturalidade do gênero e da sexualidade. Por um lado, sopranistas e
contra-tenores ocupam funções outrora reservadas tão somente aos meninos, aos castrati e às mulheres. Analogamente, algumas
senhoras, sobretudo nos corais de idosos, cantam nos naipes do tenor e do baixo,
historicamente reduto exclusivo dos homens. As expressões coro masculino e feminino
parecem, portanto, desatualizadas, podendo ser substituídas por algo genérico e
menos sexista: coro de vozes afins, de vozes iguais, de vozes agudas ou de vozes
graves de qualquer gênero.
O tema, ainda delicado, precisa ser abordado profundamente
na academia, no âmbito da graduação e da pós, amparado na legislação, numa
perspectiva racional, para além das crenças pessoais e dos princípios teológicos.
A ciência está aí para nos mostrar o caminho em direção à consolidação de uma
realidade coral que permita concomitantemente a comunhão das singularidades e o
exercício pleno da cidadania. Porque “cada um sabe a dor e a delícia de ser o
que é”, na condução do trabalho vocal, além da constituição animal, que nos é
dada pela natureza, devemos levar em consideração os elementos socioculturais e
as indiossincrasias dos sujeitos.
Vladimir Silva (silvladimir@gmail.com)
quinta-feira, 16 de abril de 2020
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